França aprova lei que obriga mercados a doar alimentos que não foram vendidos

França aprova lei que obriga mercados a doar alimentos

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Estima-se que 1,3 bilhão de toneladas de comida são jogadas no lixo por ano no mundo todo. Sim, você leu certo. É chocante mesmo! Só na França, são 7,1 milhões de toneladas de alimentos que têm como destino a lixeira. O desperdício é feito majoritariamente por consumidores, mas supermercados e restaurantes também têm uma grande parcela de culpa nesta estatística lamentável.

Pois o governo francês decidiu dar um basta neste desperdício inaceitável. Na semana passada, os membros do parlamento francês aprovaram por unanimidade uma nova lei que obriga supermercados a doarem alimentos que já tiveram sua data de venda vencida. Isso não signifca que o prazo de validade do produto esteja expirado, mas somente a data de venda na prateleira.

Um dos principais responsáveis pelo sucesso da votação foi Arash Derambarsh, parlamentar que fez campanha pela aprovação da lei. “É uma vitória histórica. É muito raro que uma lei passe assim tão rápido e com apoio unânime”, disse ele ao The Guardian.

Derambarsh já tinha conseguido a assinatura de 200 mil pessoas na França e 740 mil na Europa no começo do ano para apoiar seu projeto. Em maio de 2015, parlamentares votaram sobre o assunto, como parte de outra lei, mas depois de aprovada na época, ela foi derrubada por instâncias superiores por conter falhas que inviabilizariam seu cumprimento.

Agora a nova lei só precisará receber um selo de aprovação do Senado e a partir de 13/01, daqui um mês, entrará em vigor.

Com a nova regulamentação, supermercados que tenham mais de 4 mil m2 terão que assinar contratos com instituições de caridade ou banco de alimentos para doar produtos que não foram vendidos. Quem desrespeitar a legislação, poderá pagar multas de até €75 mil ou ser detido por até dois anos.

“Hoje, quando um supermercado como Carrefour encontra um pequeno problema na embalagem de um iogurte, ele devolve o pack todo para o fabricante, que é obrigado legalmente a destruir todos os produtos. Isto acontece frequentemente e estamos falando de volumes enormes de alimentos. Com a nova lei, empresas poderão doar estes iogurtes para caridade”, afirmou Guillaume Garot, outro parlamentar francês, ao jornal The Telegraph.

A lei estabelece ainda que qualquer cidadão possa fundar uma associação, com aprovação do Ministério da Agricultura, para coletar e distribuir alimentos. Em Paris, a novidade desencadeou uma onda de novos movimentos para acabar com o desperdício de alimentos. Cerca de 100 restaurantes lançaram a campanha La Box Anti-Gaspi, que estimula os franceses a levar para casa as sobras de suas refeições.

Em toda Europa, 89 milhões de toneladas de alimentos vão parar no lixo. A intenção de Derambarsh é persuadir outros países a adotar a mesma medida e que uma legislação similar seja aprovada pelo Parlamento Europeu.

Esgoto na Lagoa da Pampulha tira moradores de casa

Vera Lúcia Vieira/Divulgação

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Moradores da Pampulha, na região da Enseada das Garças,  estão sufocados pelo mau cheiro, que nas últimas semanas tomou conta da lagoa. A área se transformou em uma espécie de lixão flutuante, onde podem ser vistos toda a sorte de detritos represados.  Com náuseas, a vizinhança  está fugindo do local que tem atraído os urubus. Por causa do odor, há moradores que decidiram se mudar temporariamente para casa de parentes.

“Amanhã (neste domingo) não poderemos passar o dia dos pais em casa. Como receber filhos e netos com esse mau cheiro horroroso?”,  diz a auxiliar de administração, Efigênia Oliveira. Segundo ela,  muitos moradores estão se sentindo mal e tendo náuseas. Janelas e portas devem permanecer fechadas durante todo o dia, para impedir a entrada da brisa. “Temos vizinhos que já foram parar no hospital”, conta Efigênia.

Há 35 anos a professora aposentada,  Vera Lúcia Vieira é vizinha da Enseada. Ela conta que passou 40 dias em uma viagem e ao retornar para casa, foi surpreendida pelo lixo e esgoto. “A Enseada das Garças está sendo transformada em um depósito de detritos. Em mais de 30 anos, nunca vi uma situação tão grave.”

O acúmulo de dejetos ocorre na avenida Otacílio Negrão de Lima, na altura do número 12.400. Na segunda-feira, moradores da região vão até a Prefeitura cobrar uma solução para a lagoa. “Vamos também ao Ministério Público. O lugar virou ponto de urubus, dominado por uma nata de esgoto”, denuncia Vera Lúcia.

A reportagem não conseguiu contato com a Prefeitura de Belo Horizonte.

Governo compra 30% de seus produtos da agricultura familiar e melhora renda de produtores

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08/01/2016

Infográfico - Programa de compras da Agricultura Familiar

Logo após o sol nascer no Núcleo Rural de Sobradinho, em Brasília, Cleia Ribeiro, cearense de 37 anos, acorda para preparar o “pretinho”, como chamam o café, para que ela e seu marido, José Pereira, 40,  mais conhecido como Zezinho, comecem o dia. Enquanto ela se arruma para ir para o trabalho em um restaurante, Zezinho coloca as galochas e encontra com os outros três colegas para começar a colher folhas, verduras e legumes no campo.

Eles trabalham na Associação de Produtores Rurais e AgricultoresFamiliares de Sobradinho (ASPRAF) e, desde 2012, quando a Associação passou a integrar o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) na modalidade Compra Institucional, têm a certeza de vender todos os dias para um dos órgãos do executivo.

A modalidade do Programa, criada em 2012 pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), institui que os órgãos do executivo, tanto estaduais, municipais ou federais, possam comprar alimentação para uso interno, como em refeitórios, diretamente do produtor da agricultura familiar local, com contrato até R$ 20 mil anuais, por órgão comprador, com dispensa de licitação.

Mas o que era uma opção vai se transformar em obrigatoriedade. Com o Decreto 8.473 da Presidência da República, a partir de 2016, todos os órgãos federais passam a ter que comprar pelo menos 30% da alimentação interna de agricultores familiares. Para o diretor do Departamento de Apoio à Aquisição e à Comercialização da Produção Familiar do MDS, André Machado, a modalidade de Compra Institucional é uma forma de dar força a agricultura familiar.

“Desde 2012, quando foi criada, até 2015, a modalidade de Compra Institucional do PAA já movimentou mais de R$ 100 milhões em compras institucionais mapeadas. As compras públicas possibilitam a valorização dos alimentos e da produção local, dando espaço para uma alimentação mais natural”, explica.

Mas, além da alimentação saudável, a Compra Institucional possibilita o acesso ao mercado para os pequenos agricultores. O presidente da ASPRAF, Rogério LaGuardia, admite que, se não fosse pelos produtos que vende pelo PAA ao Ministério da Defesa e às Forças Armadas, a Associação estaria produzindo menos.

“Seria metade a menos da produção se não fosse o PAA. Logo, seria metade da renda a menos, metade a menos do emprego que geramoso aqui. Depois dessa modalidade, temos a certeza de que vamos vender, o que vamos vender e quanto vamos receber durante o contrato”, conta.

As cidades, o mosquito e as reformas

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Tão urgente quanto a reforma política e tributária, o debate sobre a reforma urbana subiu ao topo da agenda em meio à séria crise de saúde pública causada pela infestação do mosquito Aedes aegypti, transmissor do zika e do chikungunya, além dos vírus causadores da dengue e da febre amarela. Um olhar para além da saúde pública se faz necessário para entender o que nos faz conviver com esse mosquito há décadas. Para tratar da complexidade do tema, a pesquisa Região e Redes ouviu a professora livre docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), Ermínia Maricato. Além de estudiosa do tema, Maricato formulou a proposta de criação do Estatuto das Cidades e do Ministério das Cidades. É autora dos livros O impasse da política urbana no Brasil e Brasil cidades (Vozes, 2011). “Não adianta fazer o urbanismo do espetáculo passando por cima de décadas de demandas atrasadas”, afirma a professora, que reconhece nos novos movimentos sociais uma esperança de discussão do direito à cidade. (Foto: Raoni Maddalena)

 

Região e Redes: Grande parte da infestação do mosquito Aedes aegypti e da prevalência das doenças dele decorrentes são notificadas em bairros pobres e periféricos. Como esse problema é avaliado nas discussões sobre desenvolvimento urbano?

Ermínia Maricato: Vemos nas periferias quatro problemas seríssimos na área do saneamento: água, esgoto, drenagem de águas fluviais e coleta de resíduos sólidos, que vão formando barreiras. Córrego não é mais córrego. É área de descarte de lixo. Ali se tem a condição perfeita para a produção de mosquito. Estou falando de casos de São Paulo, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre. Em cidades praianas, o problema é ainda mais grave: tem as palafitas, os mangues. Mas a política urbana foi reduzida. É voltada para o mercado imobiliário com o [Programa] “Minha Casa, Minha Vida”, expulsando os pobres para os conjuntos habitacionais fora da cidade. Foi assim [que ocorreu] o fomento de uma especulação imobiliária fantástica.

Esqueceu-se da cidade dos pobres, que depois do boom imobiliário se expandiu mais ainda. Esquecemos das políticas públicas de saneamento e habitação. Construíram casas sem olhar onde é local de habitação. Não cabe na cabeça dos economistas que a localização é uma variável econômica. Se você constrói fora da cidade, depois tem que levar a cidade para lá. Isso é caríssimo. Custa caro o deslocamento diário das pessoas até as fontes de trabalho e de emprego.

Desde 2007 percebo que os espaços institucionais estão mortos. Por isso, defendi que tínhamos que atuar na sociedade, nos movimentos sociais. Nós temos vivido uma absoluta morte do pensamento técnico e científico, uma valorização do senso comum e um recrudescimento do pensamento nazifascista. Ainda assim algumas cidades tem avançado muito apesar do cenário adverso. Por exemplo, São Paulo, que é a capital do capital, é a capital da classe média da ideologia do condomínio, tem tido avanços importantes dentro de uma conjuntura bastante desfavorável.

 

RR: Se o saneamento é básico e com impactos em diversas áreas, porque ainda não aparece como prioridade dos governos?

EM: Saneamento trata de quatro questões: água, esgoto, drenagem e resíduos sólidos. Se você não coleta os lixos, não se salvam os cursos d’água das cidades. O lixo vai direto para lá.

Em São Paulo, a capital do capital, os rios e córregos são canais de esgotos. Para piorar, a engenharia brasileira disseminou o tamponamento de córregos com avenidas asfaltadas em cima. Isso não resolve problema algum. Só piora, e é caro.

No Brasil, temos que tirar os mercadores das decisões sobre o investimento do dinheiro. Isso tudo tem a ver com financiamento de campanha. Por isso, tem que acabar com esse financiamento empresarial, porque eles passaram a definir quais obras seriam feitas. Anos atrás, nós lutamos aqui em São Paulo para cancelar o início das obras de um túnel que não tinha prioridade para a cidade e ia custar R$ 1,5 bilhão. Era o túnel da operação Águas Espraiadas, ura uma obra imobiliária e não viária. Nem ônibus passava pelo projeto do túnel. Mas é uma obra definida pelas empreiteiras e pelo então prefeito. O que aconteceu com as prioridades?

 

RR: E o papel do saneamento para evitar a proliferação de mosquitos?

EM: Saneamento deveria ser a prioridade. A falta de drenagem de águas fluviais cria os mosquitos. O córrego não pode ficar cheio de lixo parado. Por isso, precisamos recuperar rios, córregos. Temos poças que não acabam mais. Mas não. Para afastar o mosquito joga-se veneno.

A questão do saneamento é fundamental e básica nessa discussão sobre o combate à malária, febre amarela, dengue e à febre do zika e do chikungunya. Nós temos hoje mais de 2 milhões de pessoas em áreas de proteção de mananciais na Região Metropolitana de São Paulo. Não é um problema de um prefeito, mas de muitos prefeitos e do governador.

 

RR: Como está definida a responsabilidade pelo saneamento entre os governos?

EM: A competência para o desenvolvimento urbano não é federal. É municipal em casos de municípios isolados. E é metropolitana quando compartilhada entre estado e município. Agora nós temos o Estatuto da Metrópole, mas tudo isso foi esquecido. O que resultou desse período todo foi um arcabouço legal que tem seu ápice com a criação do Estatuto das Cidades e que o judiciário ou os operadores do direito desconhecem solenemente. É muito impressionante você ver juiz dar despejo ignorando totalmente a lei. Hoje, se você olhar a Constituição Brasileira, o Estatuto das Cidades e os Planos Diretores, verá que não é simples determinar o despejo de uma comunidade. Até porque, muitas dessas propriedades, sem um registro muito correto, estão cumprindo a função social da propriedade, prevista na Constituição e no Estatuto das Cidades.

É importante que a questão urbana seja de âmbito local. Conquistamos isso na Constituição de 1988. Dizíamos que era preciso prestigiar a democracia local. Então, o desenvolvimento urbano, a questão do saneamento e do transporte são de competência urbana local. O próprio governo federal, em vez de cobrar dos municípios, passou a centralizar muitas coisas. Os movimentos sociais também fizeram com que o governo federal decidisse mais. Mas não é competência federal decidir sobre a ocupação do solo de uma cidade ou região metropolitana. No máximo pode estabelecer diretrizes.

 

RR: Existe alguma estratégia para que as questões referentes às cidades sejam pensadas sob uma ótica regional?

EM: Existe. Foi aprovado no ano passado o Estatuto das Metrópoles (http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13089.htm). Aliás, nós somos ótimos com leis. Fomos elogiados na ONU pelo arcabouço legal que avançamos. Em 2005, foi aprovada a lei de consórcios públicos, que é essa que permite aos municípios se organizarem nas regiões. Temos a Lei do Saneamento Básico, de 2007. A dos Comitês de Bacias, que são obrigatórios e que são intermunicipais. A Política Nacional de Mobilidade Urbana, de 2012, a Lei de Resíduos Sólidos, de 2012. Tivemos nos últimos 30 anos uma reforma legal geral. Existe a orientação para se ter uma “consertação” regional.

 

RR: Então, o que impede de avançarmos nesse sentido e de forma mais rápida?

EM: A questão é de poder político. Na questão urbana como um todo, nós mais avançamos quando não tínhamos dinheiro. Isso é incrível. Foi nas décadas de 1980 e 1990. Avançamos no sentido de combate à desigualdade, para ampliar a democratização com a participação popular nos conselhos e com orçamento participativo. Claro que o problema do saneamento é urbano e é territorial, mas o engajamento da sociedade é fundamental. Não vamos resolver só pedindo para as pessoas tirarem água do pratinho para evitar o mosquito. Mas a mídia está criando uma condição nesse país que não tem quem se engaje. Porque parece que são todos bandidos, corruptos, sacanas. É uma desinformação diária fantástica o que está em curso.

 

RR: O saneamento é um dos pontos chaves na questão urbana no cenário atual? Além das doenças transmitidas por mosquitos, quais são os indicativos de que a reforma urbana é imprescindível no Brasil?

EM: A necessidade da reforma urbana salta aos olhos quando se constata as condições de vida da maior parte dos trabalhadores que vive segregada nos bairros periféricos ou em municípios-dormitórios. Ou quando se observa o sacrifício diário que é imposto nos transportes coletivos. Um capítulo especial tem sido dedicado às mulheres e jovens. Um grande exército de trabalhadoras domésticas (aproximadamente 30% de chefes de família são mulheres nas regiões metropolitanas) abandona seus filhos em bairros periféricos para passar o dia trabalhando e circulando com a finalidade de obter rendimentos que não passam de dois salários mínimos. Os jovens vivem uma espécie de “exílio na periferia”, já que não há transporte acessível e eficiente para sair do bairro, que, muitas vezes, não tem escolas adequadas, centros esportivos e culturais. Eu ouvi queixas de jovens que não podiam ir ao centro ver um show ou filme e voltar para casa após a meia-noite, pois os ônibus não circulam após esse horário.

A vida nessa “subcidade” não está imune às imposições da máquina de alienação: felicidade é consumir. A violência é um resultado absolutamente visível e previsível, potencializada por organizações criminais que ocupam o espaço na ausência do Estado ou, por outro lado, potencializada pela sua presença, por meio de uma polícia violenta que conhece raça e cor. No mais, predomina a política do favor.

Reforma urbana é direito à cidade. É a democracia urbana. É a antibarbárie. Reforma urbana é a luta de classes reconhecida nas cidades, enquanto palco de relações sociais.

Outros aspectos da nossa realidade, que reafirmam a necessidade da reforma urbana, dizem respeito ao meio ambiente. A forma de expansão descontrolada das metrópoles no Brasil – e elas fornecem um modelo para as demais cidades – compromete com esgotos domésticos, os rios, córregos, lagos, lagoas e praias. Os mais pobres não cabem nas cidades – mais de 80% do déficit habitacional encontram-se nas faixas entre zero e três salários mínimos – e, como precisam inevitavelmente de um lugar para morar, ocupam encostas íngremes, mangues, dunas ou Área de Proteção de Mananciais (APM).

Em São Paulo, aproximadamente 2 milhões de pessoas moram nas APM. E isso não se dá por falta de leis de proteção ambiental. Essas áreas não interessam ao mercado imobiliário devido à legislação proibitiva. São as áreas que sobram para os que não têm lugar na cidade formal: áreas de proteção ambiental e áreas de risco de desmoronamento. Outros aspectos do desastre ambiental, decorrentes desse predatório padrão de uso e ocupação do solo, estão na impermeabilização contínua da superfície da terra, incluindo o tamponamento de córregos, o que acarreta frequentes enchentes, poluição acentuada do ar e expansão horizontal desmedida, reforçando a dependência em relação ao automóvel.

 

RR: Como o nível de desenvolvimento brasileiro contribuiu com a atual situação urbana dos grandes centros brasileiros, incluindo os problemas de saúde pública?

EM: A marca do subdesenvolvimento está presente nas características da rede de cidades com grandes metrópoles que centralizaram e centralizam as relações econômicas com o interior e o exterior – esse foi um dos principais objetos do livro Imperialismo e Urbanização na América Latina, organizado por Manuel Castells. E está também nas características intra-urbanas. Apesar da reestruturação produtiva, globalização, financeirização e ideário neoliberal, eu continuo achando que o viés patrimonialista assegurou às elites brasileiras uma relação vantajosa diante dos interesses capitalistas internacionais na produção das cidades. Estou de acordo com [Carlos] Lessa e [Sulamis] Dain. A captura da renda fundiária ou imobiliária são prerrogativa dessas elites locais ou nacionais. De um lado, um mercado altamente especulativo e, de outro, a segregação, exclusão ou apartheid territorial remetendo grande parte da população para fora das cidades (ou para favelas). São duas partes da mesma moeda.

A autoconstrução ilegal da moradia fora das áreas urbanizadas é determinada pelos baixos salários e pelo mercado restrito e excludente. À industrialização dos baixos salários corresponde a urbanização dos baixos salários. Por causa desse problema estrutural, o Estado não tem o controle sobre o uso e a ocupação do solo urbano em toda sua extensão. A legislação urbanística se aplica apenas a uma parte da cidade que é dominada pelo mercado imobiliário capitalista, stricto sensu. Esse padrão de uso e ocupação do solo, que tem um exemplo nos municípios-dormitórios das regiões metropolitanas, não pode ser desligado da baixa e precária mobilidade decorrente da pouca importância dada aos transportes coletivos.

 

RR: É possível vencer esse atraso?

EM: Durante muitos anos eu achei que era. Retomamos a proposta de reforma urbana iniciada em 1963 e, na luta contra a ditadura, construímos um movimento nacional forte e diverso, com participação de lideranças sociais, sindicais, ONG, pesquisadores, professores universitários, urbanistas, engenheiros, advogados, assistentes sociais, sanitaristas etc. Elegemos parlamentares, prefeitos e até senadores. Conquistamos um significativo arcabouço legal [Constituição Federal de 1988, Estatuto da Cidade, Planos Diretores Participativos, Marco Regulatório do Saneamento, Lei Federal dos Resíduos Sólidos, Lei Federal da Mobilidade Urbana] e institucional [Ministério das Cidades, Conferência Nacional das Cidades e centenas de conselhos participativos em todos os níveis de governo]. Enquanto os investimentos estavam escassos, entre os anos 1980 e 1990, vivemos um período muito criativo nos governos locais, com experiências que ficaram famosas no mundo todo, como orçamento participativo, programa CEU [Centro Educacional Unificado], urbanização de favelas etc. Estamos falando de reformas que podem conviver com relações capitalistas numa sociedade mais democrática. Quando o governo federal retomou os investimentos – chamado por alguns de neodesenvolvimentismo –, as cidades foram tomadas de assalto por alguns capitais: empreiteiras de construção pesada (infraestrutura, em especial rodoviária), incorporadores imobiliários e indústria automobilística.

A taxa de desemprego nunca foi tão baixa desde que é registrada. Mas as cidades explodiram, seja pelos incríveis congestionamentos viários – o que atingiu também a classe média -, seja pelo aumento fantástico dos preços dos imóveis e aluguéis reproduzindo, em novas bases, a segregação e a exclusão urbanas. Com as obras da Copa do Mundo e a especulação imobiliária, esse impacto nas cidades se aprofundou. Os subsídios aos automóveis duplicou o número de carros em poucos anos. Os subsídios à moradia, em contexto de mercado fundiário e imobiliário sem controle, impactaram o preço da terra e dos imóveis.

A proposta de reforma urbana tinha como núcleo central a reforma fundiária. Mas a função social da propriedade ficou apenas no papel. Ainda que esse papel seja a Constituição Federal e a Lei Federal Estatuto da Cidade. É preciso ainda dois aspectos políticos que contribuíram com essa derrota da utopia da reforma urbana, além, evidentemente, da conjuntura capitalista internacional: primeiro, as forças que propuseram a reforma urbana foram engolidas pela institucionalidade, assim como alguns partidos de esquerda, e perderam a capacidade transformadora; segundo, o financiamento das campanhas eleitorais, especialmente na escala local, está imbricado com as forças que têm nas cidades seu grande negócio.

 

RR: Isto posto, o que é possível fazer para vencer essa barbárie que se instalou nas cidades brasileiras?

EM: Na escala da política urbana, e isso é competência do poder municipal, aplicar as leis, os programas e planos diretores que ficaram nas gavetas e nos discursos. O transporte coletivo, por exemplo, é prioridade legal em todos os planos diretores, mas na prática é o carro e o rodoviarismo que comandam a mobilidade e os investimentos em consonância com o mercado imobiliário. Isso quer dizer que túneis, pontes, viadutos, novas avenidas, além de se prestarem para a visibilidade que o marketing eleitoral explora e render dividendos para campanha eleitoral, agregam valor às propriedades localizadas nos seus arredores. A proposta de reforma urbana, com ênfase na função social da propriedade e no IPTU progressivo, não foi implementada com a finalidade de democratizar as cidades.

Na escala metropolitana, precisamos avançar numa gestão compartilhada. Evitar que cada município aponte um rumo diverso, ou sem levar em consideração o outro, numa região em que a urbanização é contínua e desconhece limites institucionais. Nas metrópoles não há mais solução municipal para políticas de habitação, transporte, saneamento ambiental, drenagem, coleta e disposição final do lixo, coleta e tratamento de esgoto, captação e distribuição da água, além de saúde e educação. A Constituição de 1988 remeteu à esfera estadual a competência da definição de regiões metropolitanas e sua gestão. Mas os governadores e os legislativos estaduais não querem afrontar os municípios e suas políticas paroquiais. Esses desafios ainda se mantêm atualizados.

 

RR: Assim como outras questões sociais, econômicas e políticas estruturais, como uma reforma urbana pode contribuir com o desenvolvimento, em seu sentido mais amplo, da sociedade brasileira?

EM: A luta salarial não dá conta de melhores condições de vida nas cidades. Os governos Lula e Dilma lograram melhorar a taxa de salários. No entanto, essa melhora que permite comer melhor, comprar motos, carros, eletrodomésticos, não permite a compra de melhores transportes coletivos. Porque o automóvel não resolve o problema. Também não impede o avanço de epidemias como a dengue. Há que se fazer reformas e uma delas passa pela terra urbana ou terra urbanizada. Além do que foi apontado, poderíamos calcular o custo social dessa cidade espoliada que beneficia apenas alguns. Acho incrível que os economistas não reconheçam o impacto que a especulação imobiliária tem na inflação. Eu vivo isso cotidianamente no meu bairro com o preço dos aluguéis, do estacionamento, do cafezinho etc.

Temos alguns estudos que revelam o custo das aproximadamente 40 mil mortes anuais e perto de 400 mil feridos no trânsito ao sistema previdenciário. Temos estudos que mostram o impacto e o custo da poluição do ar na saúde das pessoas. Temos ainda estudos que mostram o custo das horas paradas no trânsito, mas como disse alguém “tudo isso contribui para aumentar o PIB”. Até mesmo os doentes nos hospitais. A professora Tania Bacelar [economista e socióloga] lembra sempre dessa invisibilidade do espaço e do território em nossos debates nacionais. No entanto, sei que a resposta a essa pergunta não é simples.

 

RR: Em artigo publicado na revista Política Social e Desenvolvimento você menciona que “exceção é mais regra do que a exceção e a regra é mais exceção do que regra”, no cotidiano das cidades. O que isso significa?

EM: Essa frase do teatrólogo Bertold Brecht expressa bem a dialética presente nas cidades brasileiras, onde a lei se aplica de acordo com as circunstâncias. Grande parte da população urbana, exatamente a de mais baixas rendas, mora ilegalmente, desconhecendo legislação de parcelamento do solo, ambiental, de zoneamento, de código de obras e edificação etc. Essa ilegalidade parece fornecer um chão para todas as outras: não há polícia, cortes ou tribunais para a solução de conflitos. Os direitos básicos previstos em lei não são observados. A proporção dessa população varia conforme a cidade e a região do país. No Norte e parte do Nordeste mais de 50% da população urbana moram na cidade ilegal, onde “a exceção é mais regra que exceção”. Isso é, sem dúvida, chão fértil para a violência.

Interessante lembrar como contraponto: a legislação e os planos diretores são detalhistas e os procedimentos de controle do uso e ocupação do solo são profusamente burocráticos.

 

RR: A sociedade brasileira, que se sente cada vez menos representada por seus governantes, pode delegar as discussões e a realização de uma tarefa dessa magnitude exclusivamente aos políticos?

EM: Não há a menor dúvida de que precisamos de uma reforma política no país. Os interesses do agronegócio e da especulação imobiliária são dominantes no Congresso Nacional e isso tem a ver com financiamento de campanha.

Para a reforma urbana precisamos também combater o analfabetismo urbanístico ou geográfico, que atinge também muitos economistas, advogados etc. A terra é um componente que se renovou na globalização financeirizada. Cada pedaço de cidade é único. A aplicação da função social da cidade, da função social da propriedade e do IPTU progressivo são fundamentais. A especulação imobiliária empobrece as cidades. Mas, muitos a veem como progresso e desenvolvimento. A universidade teria uma tarefa importante aí.

 

RR: Na década de 1960, os partidos de esquerda defendiam a necessidade de uma reforma urbana no Brasil. Hoje, quem são os defensores?

EM: Penso que num determinado momento, entre 2007 e 2013, a reforma urbana ficou totalmente esquecida. Parecia a alguns que um montão de obras iria resolver os problemas do desenvolvimento do país e das cidades. Acontece que as obras não obedeceram a alguns pré-requisitos: a precedência de uma reforma fundiária/imobiliária e a obediência a um planejamento baseado nas necessidades sociais. Eu costumo dizer que são obras sem plano e plano sem obras. Estamos em dívida com o transporte coletivo há décadas. Não adianta querer fazer o fetiche [urbanismo do espetáculo] do futuro trem bala, monotrilho, passando por cima de décadas de demandas atrasadas. Os lobbies atuam nas câmaras municipais, assembleias legislativas, antecâmaras de governos e partidos sem descanso. Mas acho que uma nova geração vem aí. Jovens do MPL [Movimento Passe Livre], Intervozes, Levante Popular da Juventude, MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra] estão começando a construir uma unidade popular que tem muito a ver com cidade e democracia. Constatei a busca dessa unidade em algumas cidades, já que sou muito demandada para falar a eles. Claro que o momento é de muita tensão, já que o jogo dos conservadores é pesado, o que inclui, evidentemente, a grande mídia.

Como a questão urbana é muito complexa, vejo como muito importante o papel dos profissionais de arquitetura, urbanismo, engenharia, assistência social, agrônomos, paisagistas, médicos, sanitaristas, economistas, entre outros. Mas é uma minoria que tem o pé na realidade e tem propostas concretas para a solução de problemas. Abundam profissionais que vendem ideologia sob a forma de resultados práticos. No Judiciário, a legislação urbana é majoritariamente desconhecida. Mas existe no Brasil uma expertise considerável ligada a problemas urbanos.

Exposição à poluição ambiental mata quase 7 milhões de pessoas por ano

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O Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) chamou a atenção na sexta-feira, 19 de fevereiro, para a longa e crescente lista de problemas de saúde associados à degradação ambiental. Segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), 23% das mortes prematuras em todo o mundo poderiam ser atribuídas a fatores ambientais. Entre as crianças, a percentagem sobre para 36%.

“Todos os anos, quase 7 milhões de pessoas morrem, porque são expostas à poluição em ambientes internos e externos, (envolvendo) desde a produção de energia, a utilização de fornos, o transporte, fornalhas industriais até queimadas e outras causas”, afirmou o diretor executivo do Pnuma, Achim Steiner.

O chefe da agência da ONU destacou que cerca de mil crianças morrem por dia devido a doenças transmitidas por água contaminada e imprópria para o consumo. No mundo, mais de 2 bilhões de indivíduos vivem regiões onde falta água.

O Pnuma mencionou a zika, a malária e o ebola entre as infecções cujos riscos são agravados conforme a degradação da natureza aumenta. Diferentes tipos de câncer e formas de intoxicação também foram citados.

Intervenção humana
“Há uma consciência crescente de que os humanos, pela sua intervenção no meio ambiente, desempenham um papel fundamental no recrudescimento ou na mitigação dos riscos à saúde”, disse Steiner.

Um exemplo consistente é o Protocolo de Montreal, acordo que foi implementado em 1989 e que retirou de circulação quase 100 substâncias nocivas à camada de ozônio. Segundo o Pnuma, estimativas indicam que, graças à iniciativa, cerca de 2 milhões de casos de câncer de pele serão prevenidos até 2030. Até 2060, a proibição dessas substâncias deve gerar ganhos de até 1,8 trilhão de dólares para os setores de saúde.

Eliminação do chumbo
Outra medida lembrada pela agência foi a remoção de chumbo dos combustíveis, o que estaria contribuindo para evitar 1 milhão de mortes prematuras por ano. A eliminação do metal da composição da gasolina poderá aumentar o Produto Interno Bruto (PIB) global em até 4%.

Além de combaterem a disseminação de doenças infecciosas, investimentos em saneamento e água potável também podem ser lucrativos. O Pnuma calcula que, para cada dólar investido no setor, lucra-se entre cinco e 28 dólares.

A relação entre saúde e meio ambiente será amplamente debatida na Assembleia Ambiental das Nações Unidas, que acontecerá ao final de maio. Durante a ocasião, o Pnuma lançará um relatório sobre o tema a fim de promover a discussão sobre os vínculos entre desenvolvimento, meio ambiente, saúde e economia.

Médico cria farmácia que receita alimentos frescos ao invés de remédios

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Aquela velha máxima de que “você é o que você come” nem sempre é levada tão à risca como é por esse médico norte-americano – que aconselha seus pacientes a seguirem tratamentos com frutas e verduras frescas. E com um detalhe: é tudo orgânico!

O dr. Garth Davis, do Mermorian Herman Medical Center, no Texas, comanda uma pequena farmácia que distribui vegetais orgânicos como forma de prevenir e ajudar na recuperação de doenças. Ele conta que junto com outro médico, teve essa ideia porque sempre depois de uma consulta, ou cirurgia, a recomendação era se alimentar bem.

Uma vez por semana a “Farmacy Stand”, (que fica dentro do próprio hospital) vende uma caixa cheira de orgânicos por US$ 25. Mas se você tiver uma receita médica da equipe do dr. Davis ainda ganha US$ 10 de desconto financiados pela própria instituição. Como não amar? ❤

DIARRÉIA

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O ano em que São Paulo imergiu na crise hídrica também foi marcado por uma hiperepidemia de diarreia aguda, que dura de 2 a 14 dias e pode causar cólicas e febre. Dados divulgados pela Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar, vinculada à Secretaria Estadual da Saúde, mostram que 315 mil casos foram registrados no Estado em 2014, uma média de 863 ocorrências por dia.

O levantamento foi apresentado em maio deste ano durante evento na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), quando Eliana Suzuki, diretora do departamento que também é ligado ao Centro de Vigilância Epidemiológica, classificou a situação como “hiperepidêmica” e a relacionou ao problema de falta d’água. Em nota enviada na última sexta-feira (24), a secretaria informou que os dados “são preliminares” e que “qualquer conclusão é precipitada, alarmista e pode levar a um pânico desnecessário”.

Intitulada “Agravos para a Saúde Humana Decorrentes de Águas Não Potável”, a apresentação revela que o pico de diarreia aguda aconteceu em fevereiro, quando o índice superou em 70% a média de casos para o período – foram 34 mil ante os 20 mil calculados entre 2008 e 2013. Só na capital, foram 9.900 registros na sétima semana do ano, o que representa mais que o dobro (110%) da média do período, que é de aproximadamente 4.700 ocorrências.

Naquele mês, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) lançou o programa de bônus para estimular a economia e iniciou o racionamento de água noturno por meio da redução da pressão nas tubulações, com o objetivo de diminuir a produção do sistema Cantareira, que já estava em situação crítica. A manobra provoca cortes no abastecimento e expõe a rede pública ao risco de contaminação por infiltração do lençol freático.

Em fevereiro deste ano, quando o racionamento já começava no início da tarde, um dirigente da Sabesp admitiu à reportagem que as manobras operacionais podem deixar parte da rede despressurizada em pontos altos da cidade. No mesmo mês, o diretor metropolitano da Companhia, Paulo Massato, afirmou que isso só aconteceria em caso de rodízio. Em abril, a reportagem mostrou que ao menos cinco ruas no Jardim Paulistano, na zona norte paulistana, receberam água da Sabesp contaminada, e alguns moradores ficaram com diarreia.

Volume morto do manancial

No evento de maio, Eliana lista como uma das causas da propagação de diarreia aguda algumas ações adotadas pela Sabesp, como a redução da pressão e a captação de água do volume morto do manancial. Outro motivo apontado por ela foi a migração dos consumidores para fontes alternativas, como caminhão-pipa e poços artesianos, que aumentam o risco de consumo de água de má qualidade.

“Se vê, claramente, que o número de casos de diarreia está muito maior. A gente evidencia que, com a falta de água e consequência que isso traz, 2014 foi hiperepidêmico”, disse Eliana. Segundo ela, a crise hídrica também comprometeu a higiene alimentar e pessoal, o que contribui para a ocorrência do problema. “Com menos água, se lava menos os alimentos, mesmo os restaurantes diminuem o controle.”

Cólica

No final do ano passado, a agente de inclusão digital Mônica Diniz da Silva, 40, passou quatro dias com diarreia aguda. Ela é moradora do Jardim Ângela, na zona sul da capital.

“Foi entre novembro e dezembro. Lembro que estavam mexendo em várias tubulações aqui na rua. Não avisavam antes, ficávamos sem água e ela voltava com barro e com cheiro ruim. Nós íamos para o médico e ele falava para comprar água ou ferver. A água vinha direto da rua e temos filtro, mas, quando vem a sede, a gente bebe de qualquer lugar.”

Mônica diz que ela, o marido e o filho de 2 anos apresentaram os sintomas. “Tive febre e muita cólica. Eu até pensei que era dengue, mas depois parou e não tive mais [diarreia].” Após o episódio, ela conta que comprou uma caixa d’água de 350 litros e parou de acompanhar as interrupções do fornecimento de água. “O pessoal daqui diz que falta, mas eu não sei os dias exatamente.”

Dados preliminares

A Secretaria de Estado da Saúde afirmou, em nota, que “não é válido relacionar a situação hiperepidêmica de doenças diarreicas agudas com a crise hídrica”. Segundo a pasta, os dados apresentados em maio “são análises meramente preliminares e que podem não ser confirmados quando de sua finalização”.

A pasta informou ainda que os dados isolados não são suficientes para a realização da análise, pois eles precisariam ser cruzados com relatórios municipais “de investigação de possíveis surtos”, que ainda não foram finalizados, e com informações das concessionárias que fornecem água para todo o Estado.

Em entrevista ao jornal “O Estado de S. Paulo” na última sexta-feira, a diretora da Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar da secretaria, Eliana Suzuki, preferiu reclassificar a situação como um “aumento de casos” e não mais como “hiperepidemia”. “O trabalho ainda está em investigação. A gente consegue ver um aumento no número de casos nesse período que deixei mais evidente na palestra.”

Ela voltou a afirmar que há várias hipóteses para o ano passado ter superado a média de casos de diarreia aguda. “O que foi colocado na palestra é que a gente teve uma percepção do aumento de diarreia em 2014 e [isso] pode estar associado à crise hídrica. Com a redução da água, a higiene pessoal pode ficar escassa ou as pessoas podem buscar outra alternativa de água, como o caminhão-pipa. O que eu quis passar naquele algoritmo é que tudo é um risco. Na redução, temos consequências, mas não se pode afirmar que a água está vindo contaminada.”

A diretora explicou que o trabalho de monitoramento de casos é rotineiro e que a pasta tem realizado, desde o ano passado, uma intensificação dos trabalho de orientação nos municípios. “Cada vez que tem um aumento, acionamos o município e entramos com um alerta de suspeita de surto para verificar qual pode ter sido o problema e para dar orientações para manipulação de alimentos e prevenir os próximos casos.”

Procurada, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) não se manifestou.

LIGAR OS PONTOS

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Os casos de diarreia aguda tiveram um aumento importante no Estado de São Paulo em 2014, associado à crise hídrica. A avaliação é do próprio Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE), órgão da Secretaria Estadual de Saúde, ligado ao Governo Geraldo Alckmin (PSDB). O centro qualificou 2014 como um ano “hiper-epidêmico”, após uma análise detalhada, embora preliminar, das notificações de surtos da doença. O órgão associa o evidente aumento de casos comunicados – quase 35.000 em algumas semanas de fevereiro, março e setembro – aos problemas de abastecimento de água que ainda afetam toda a região metropolitana e várias cidades do interior.“A crise hídrica escancara problemas que não são novos em relação à água e ao saneamento em São Paulo e no Brasil”, considera o estudo.

Na série histórica dos seis anos anteriores à crise, 2008 a 2013, a média do Estado mostra que o número de casos se situava entre 15.000 e 20.000, nunca superando os 25.000. Nessa série, setembro aparece sempre como um mês crítico e registra o maior número de notificações anuais, superando um pouco mais de 20.000.

A diminuição de pressão, a intermitência do abastecimento, o racionamento, o consumo do volume morto das represas, e o uso da água de poços e caminhões-pipa, cuja qualidade não é sempre fiscalizada conforme a lei, são as principais causas que podem comprometer a qualidade da água e promover o surgimento de surtos (ocorrência de dois ou mais casos) de diarreia e outras doenças transmissíveis pela água, conforme aponta a pesquisa do CVE.

O estudo identifica cenários relevantes como o da capital e os de outros sete municípios do interior – Campinas (norte), Tambaú (noroeste), Mogi das Cruzes (região leste), Araraquara (centro), Piracicaba (noroeste), São José do Rio Preto (noroeste) e São João da Boa Vista (centro-leste) – observou-se o aumento de atendimentos com concentrações muito mais altas em determinados momentos do ano, que coincidem com os períodos mais críticos da crise, como o final da estação da seca.

No caso de Tambaú, município de 23.000 habitantes, os casos de diarreia dispararam de menos de uma dezena até mais de 90 a partir de 16 de agosto de 2014, quatro dias antes de a cidade decretar estado de calamidade por falta de água. O número de casos não voltou à normalidade até novembro, embora até fevereiro deste ano a média de notificações continuou superior à verificada no mesmo período de 2014.

Os períodos de janeiro a abril e de agosto a setembro do ano passado foram críticos no conjunto do Estado. A análise é feita com base nas chamadas semanas epidemiológicas, que começam no domingo e terminam no sábado seguinte. No período de 9 a 15 de fevereiro foram registrados quase 35.000 casos no Estado, assim como na semana entre 7 e 13 de setembro, onde o número foi similar. Durante o resto das semanas, o índice de notificações não caiu abaixo de 15.000. O número de casos, entretanto, pode ser ainda maior. Emoutro estudo do tipo de 2005, a médica e sanitarista Maria Bernardete de Paula Eduardo, que ocupava a diretoria da Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar do CVE desde 1999, demonstra que apenas 40% das pessoas que têm a doença procuram o serviços de saúde, que passaram a notificar os atendimentos por diarreia em 2000.

Fonte: DDTHA/CVE/CCD/SES-SP (SIVEP_DDA) DC – anos de 2008 a 2013

As primeiras conclusões deste levantamento foram apresentadas em maio pela atual diretora da Divisão de Doenças de Transmissão Hídrica e Alimentar do centro, Eliane Suzuki, com dados coletados e analisados pelo departamento público. Na intervenção, feita em um seminário sobre segurança da água para consumo humano, ocorrido na Faculdade de Saúde Pública da USP, Suzuki afirmou: “Se vê claramente que o número [de casos de 2104] é maior. Isto evidencia que com a falta de água e as consequências que isso traz, 2014 foi um ano hiper-epidêmico”. A apresentação está disponível, a partir do minuto 79, no site da USP.

O EL PAÍS mostrou em reportagem de maio deste ano que a contaminação do encanamento de água potável, com terra ou esgoto, pode deixar uma rua inteira doente. Os moradores do Jardim Conceição, um bairro pobre de Osasco, relataram que em fevereiro deste ano, famílias inteiras apresentaram sintomas como vômitos e diarreia. “A água da rede de esgoto se misturou com a das tubulações”, afirmou Nazaré, de 46 anos, uma das afetadas. “A água que saía da torneira tinha cheiro de merda, e a rua inteira ficou doente”. A Sabesp afirmou na época que o que poluiu a água foi terra e que a avaria foi consertada em três dias. “Nós não confiamos mais nessa água, muito menos para dar às crianças”, dizia a jovem Janaína Dias. O estrago, disse, os deixou 15 dias sem água.

No período de 9 a 15 de fevereiro foram registrados quase 35.000 casos no Estado, assim como na semana entre 7 e 13 de setembro, onde o número foi similar.

Outros casos foram revelados pela imprensa, antes das autoridades agirem, durante o ano passado. Em agosto de 2014, o município de Brodowski, a 339 quilômetros de São Paulo, registrou 195 casos de pessoas com vômitos e diarreia em 15 dias, segundo informou a Folha de S. Paulo. O Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Brodowski (Saaeb) não descartou a possibilidade de as pessoas terem sido contaminadas pela água, após o abastecimento ser relegado aos caminhões-pipa. Também em agosto, moradores de Redenção da Serra, município atendido pela Sabesp a 163 quilômetros da capital, sofreram nos seus estômagos a seca da sua represa e um problema na estação de tratamento de água, segundo noticiou o portal G1.

Já em março deste ano, Moradores do Jardim Turquesa, no M’Boi Mirim (zona sul de São Paulo) receberam água com cheiro de esgoto e, segundo o diário Agora, ao menos 57 pessoas passaram mal com diarreia, vômito, dor de cabeça ou febre, após contato com a água malcheirosa e de cor amarronzada. O jornal levou o líquido a um laboratório, que constatou a presença de coliformes fecais (presentes nas fezes), o que torna a água imprópria para consumo, mesmo após fervura. A Sabesp negou e afirmou que a água atendia os padrões sem apresentar risco sanitário.

Os moradores do Jardim Conceição, um bairro pobre de Osasco, relataram que em fevereiro deste ano, famílias inteiras apresentaram sintomas como vômitos e diarreia.

A Sabesp, que foi consultada pela incidência de doenças durante a crise hídrica nos municípios onde ela opera (São Paulo, Mogi das Cruzes e São João de Boa Vista), afirmou por meio da assessoria da imprensa que “a água distribuída à população está dentro dos parâmetros exigidos pela Portaria 2.914/2011, do Ministério da Saúde”. A empresa disse que os resultados dos mais de 62.000 análises mensais que realiza são encaminhados para as vigilâncias sanitárias locais, conforme a lei.

A Secretaria de Saúde afirmou que os dados do estudo foram utilizados para debater a questão das doenças transmitidas por água e alimentos, “além de ajudarem na elaboração do plano de contingência em relação ao cenário de estiagem e crise hídrica”. Questionada sobre por que a população não foi alertada sobre os riscos de doenças transmitidas pela água em um cenário de crise hídrica, a pasta afirmou que “cabe a cada município desencadear suas ações, de forma descentralizada, e alertar a população”. A assessoria de imprensa negou entrevista com a responsável do departamento que fez o estudo e avaliou depois que a interpretação da reportagem sobre o mesmo, apesar de checada com diversas fontes, “é fruto de ansiedade porque o estudo ainda é meramente preliminar”.

Willkner Eduardo Gama, de 21 anos, e pelo menos mais quatro pessoas da mesma rua de Carapicuíba contraíram Hepatite A nos últimos 15 dias. / MARTHA LU

Além das diarreias e vômitos, a água contaminada também pode causar outras doenças mais graves, como a Hepatite A, uma inflação do fígado causada por um vírus transmitido pela ingestão de água ou alimentos contaminados com matéria fecal.

Em Carapicuíba, ao menos cinco pessoas tiveram Hepatite A nos últimos 15 dias em apenas duas ruas de um mesmo bairro. Eles começaram a sentir uma forte dor abdominal, fadiga, falta de apetite e perceberam que um tom amarelo tingiu seus olhos e pele. Luan, de sete anos, Rosângela, a mãe, e o jovem Willkner Eduardo Gama, de 21 anos, foram três das vítimas. “Fiz tratamento com soro e chá de picão [uma erva medicinal] e já estou bem, mas o médico me falou que foi por culpa da água que tinha bebido e não voltei a tomar da torneira. Aquele dia que eu fiquei doente, a água estava com uma cor amarela”, conta Willkner.

A doença, no entanto, permaneceu estável nos últimos anos em São Paulo e tende a desaparecer graças a uma vacina específica aplicada nas crianças, conforme informações do CVE. No ano passado, foram registrados 16 surtos, com até 60 casos no mês de setembro. Um surto é considerado a partir de dois casos na mesma fonte, no mesmo lugar e no mesmo período de tempo.