Água, a tragédia invisível

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Em 2025, ou seja, em menos de oito anos, 1,8 bilhão de pessoas padecerão da mais absoluta escassez de água, e dois terços da humanidade sofrerá de estresse hídrico – a não ser que a comunidade internacional reaja e tome providências.

Cresce atualmente o medo de que o avanço da seca e dos desertos, assim como a progressiva escassez de água e a insegurança alimentar gerem um “tsunami” de refugiados e imigrantes climáticos. Diante disso, não é de estranhar que a Convenção das Nações Unidas de Luta contra a Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês) considere a seca como “um dos quatro cavaleiros do Apocalipse”.

A demanda por água poderá aumentar 50% em 2050. Com o crescimento demográfico, particularmente nas terras secas, cada vez mais pessoas dependem do abastecimento de água potável em terras que se degradam, alerta Monique Barbut, secretária da UNCCD, que tem sede em Bonn, Alemanha.

A escassez hídrica é um dos grandes desafios do século 21. A seca e a falta d’água são consideradas os desastres naturais com maiores consequências, pois geram perdas ecológicas e econômicas a curto e a longo prazo, além de causar impactos secundários e terciários.

Para mitigar as consequências, é preciso haver uma preparação para a seca, que seja sensível às necessidades humanas e ao mesmo tempo preserve a qualidade ambiental e os ecossistemas. É necessário contar com a participação de todos os atores, inclusive dos usuários e provedores do serviço, na busca de soluções – afirma a UNCCD. “Atribui-se à seca — um perigo natural complexo, que avança lentamente e tem consequências ambientais e socioeconômicas generalizadas — mais mortes e deslocamentos de pessoas do que qualquer outro desastre natural.”

Seca, escassez hídrica e refugiados

Monique Barbut lembrou que as regiões propensas à seca e à escassez hídrica são, em geral, locais de origem de muitos refugiados. Nem a desertificação nem a seca são causas de conflitos ou migrações forçadas, mas podem elevar o risco de sua ocorrência e intensificar os já existentes, explicau ela.

“Fatores convergentes como tensões políticas, instituições frágeis, marginalização econômica, ausência de redes de segurança social ou rivalidade entre grupos criam as condições que levam as pessoas a não conseguir fazer frente às dificuldades. Um dos últimos exemplos conhecidos são a seca e a escassez de água contínuas na Síria, de 2006 a 2010”, lembrou Barbut.

Em 2045 haverá 135 milhões de pessoas desabrigadas?

A UNCCD ressalta que os desafios geopolíticos e de segurança que ameaçam o mundo são complexos, mas com a implantação de melhores práticas de gestão territorial pode-se ajudar as populações a adaptar-se às mudanças climáticas, assim como a construir capacidade de resistência à seca.

Além disso, é possível reduzir o risco de migrações forçadas e conflitos pela escassez de recursos naturais e assegurar a produção de uma agricultura sustentável e de energia. “A terra é a verdadeira aglutinadora de nossas sociedades. Reverter os efeitos de sua degradação e da desertificação por meio de uma gestão sustentável não só é possível como é o próximo passo lógico para as agendas de desenvolvimento nacionais e internacionais”, observou.

A UNCCD alerta que 12 milhões de hectares de terras produtivas tornam-se estéreis a cada ano, devido à seca e à desertificação, o que representa a redução da oportunidade de produzir 20 milhões de toneladas de grãos. “Não podemos seguir permitindo que as terras se degradem, quando deveríamos elevar a produção de alimentos em 70% para alimentar, em 2050, toda a população mundial”, ressalta.

“A intensificação sustentável da produção de alimentos com menos insumos, que evitam maior desmatamento e a expansão de cultivos em áreas vulneráveis, deve ser uma prioridade para os políticos responsáveis”, sugere. Além disso, a secretaria da UNCCD ressalta que o aumento das secas e das inundações repentinas — as mais fortes, mais frequentes e mais generalizadas — destroem a terra, principal reserva de água doce da Terra. “A seca mata mais pessoas que qualquer outra catástrofe ligada ao clima, e avançam os conflitos entre comunidades por causa da escassez de água”, afirmou. “Mais de um bilhão de pessoas não têm acesso à água, e a demanda aumentará 30% até 2030”, acrescentou.

Segurança nacional e migrações

Mais de 40% dos conflitos dos últimos 60 anos estão relacionados ao controle e à divisão de recursos naturais, o que expõe um número cada vez maior de pessoas pobres à escassez hídrica e à fome, e cria as condições para a falência de Estados e conflitos regionais, alerta a UNCCD.“Grupos não estatais aproveitam-se dos grandes fluxos migratórios e das terras abandonadas”, observa. “Quando bens naturais, como a terra, são mal administrados, a violência pode converter-se no principal meio para o controle dos recursos naturais, e isso os tira das mãos de governos legítimos”, alerta.

O número de migrantes vem crescendo rapidamente, em escala mundial, há 15 anos, chegando a 244 milhões em 2015, mais que os 222 milhões de 2010 e os 173 milhões de 2000. A UNCCD recorda a relação entre esse número de migrantes e as dificuldades em matéria de desenvolvimento, em particular as consequências da degradação ambiental, a instabilidade política, a insegurança alimentar e a pobreza, assim como a importância de atender os fatores e as causas de raiz da migração irregular.

A perda de terras produtivas faz com que as pessoas elejam opções arriscadas. Nas áreas rurais, onde elas dependem de terras pouco produtivas, a degradação dos solos é responsável pela migração forçada, explica a secretária. “A África é particularmente suscetível, pois mais de 90% de sua economia depende de recursos sensíveis ao clima, como a agricultura de subsistência, que precisa das chuvas.”

“A não ser que mudemos nossa forma de administrar a terra, nos próximos 30 anos poderemos deixar um bilhão de pessoas, ou mais, vulneráveis e sem opções, a não ser fugir ou lutar”, disse ela. Melhorar o rendimento e a produtividade da terra permitirá aumentar a segurança alimentar e o rendimento dos usuários de terras e agricultores mais pobres, recomenda a UNCCD. “Por sua vez, estabiliza a renda da população rural e evita o deslocamento desnecessário de pessoas e suas consequências.”

Por outro lado, a UNCCD trabalha com parceiros como a Organização Internacional para as Migrações para fazer frente aos desafios colocados pela degradação de terras, os movimentos massivos de pessoas e suas consequências. Também procura demonstrar como a comunidade internacional pode aproveitar as capacidades e habilidades dos migrantes e refugiados, além de ressaltar o valor das remessas que eles enviam a seus países para construir a capacidade de resistência.

O São Francisco em mudança de curso

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Os indígenas costumavam chamar o Rio São Francisco de “Opará”, que significa “rio-mar”. Após a chegada dos portugueses ao Brasil, no entanto, ele ganhou o nome do santo italiano. Com o tempo, o curso de água, que é um dos três maiores do país, popularizou-se com a benção de seus ribeirinhos no sertão sob a alcunha de “Velho Chico”. O rio nasce em Minas Gerais, na Serra da Canastra, na cidade de São Roque de Minas. De lá, percorre longo caminho até desembocar na foz do Oceano Atlântico, na divisa entre Alagoas e Sergipe. Em seu curso pelo Nordeste brasileiro, o rio cruza toda a Bahia e o norte de Pernambuco. O caminho de pouco mais de 2.800 quilômetros é margeado por diversas comunidades sertanejas, que há seis anos convivem com uma seca histórica, a maior dos últimos cem anos. Seus diversos afluentes não são tão perenes e sofrem ainda mais com a falta de chuvas.

As secas, que abatiam a região já no século 19 e impediam que os pequenos ribeirões e afluentes do São Francisco fossem perenes, motivaram o governo imperial de Dom Pedro II a pensar na transposição das águas do rio para áreas do sertão nordestino e, inclusive, integrá-las ao Rio Tocantins, que cruza os estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará. Em 1847, Marcos Antônio de Macedo, o intendente da comarca do Crato, no Ceará, elaborou o primeiro projeto para transpor as águas do rio para o castigado sertão cearense. Saindo de Cabrobó, no interior pernambucano, as águas chegariam ao Rio Jaguaribe, já no estado vizinho. A ideia percorreu a história brasileira, estacionando em problemas de infraestrutura e falta de vontade política para uma obra que, desde o princípio, prometia ser grandiosa. Presidentes como Epitácio Pessoa, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso negaram-se a topar o desafio. Foi somente em 2003, na primeira gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que a obra ganhou corpo, sob a tutela do então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. “A ideia da obra [é do tempo do Império] sim e é até uma obviedade, porque você tem, no Nordeste Setentrional, essa grande esquina do Brasil, você tem dois rios perenes, o São Francisco e outro é o Parnaíba – de uma vazão muito medíocre”, explica Ciro Gomes, em entrevista ao Brasil de Fato.

O ex-governador do Ceará (1991-1994) conta que já carregava a ideia da transposição desde o início da sua vida pública. “Eu era deputado estadual, fui prefeito, fui governador, e eu sempre trago essa agenda, meio que como o sentido da minha militância”. O projeto, segundo Ciro Gomes, foi feito em apenas um dia. “A concepção toda veio muito rápido”, conta. “A gente percebeu que não eram necessárias ideias malucas de transpor 300 m³, 500 m³. Nós percebemos que, com sazonalidade e gestão, o máximo de vazão deveria ser de 76 m³ por segundo. Aí o projeto ficou muito viável. Sob o ponto de vista do custo também”. No entanto, foi a obstinação do ex-presidente que tornou o projeto realmente viável, revela Gomes. “Quando o Lula me chamou para ser ministro, eu não estava querendo, ele disse: ‘Olha, eu quero que você venha, porque nós vamos fazer a transposição do São Francisco. Se você topar, eu faço esse projeto agora’”, relembra. Para o povo nordestino, principalmente o sertanejo, Lula é o “pai da obra”. Segundo os moradores, a origem do ex-presidente – natural de Garanhuns, no interior de Pernambuco – foi o estímulo para que ele se empenhasse pessoalmente no projeto da transposição. Anos depois, em março de 2017, Lula foi à cidade de Monteiro, no interior paraibano – destino final dos 270 quilômetros do Eixo Leste do projeto de transposição – acompanhado da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), para a “Inauguração Popular da Transposição do São Francisco”. O evento foi um contraponto à visita do presidente golpista Michel Temer (PMDB), que, nove dias antes, esteve na mesma Monteiro, em função da obra.

No evento popular, Lula lembrou que, sua infância, no sertão de Pernambuco, foi decisiva para que a iniciativa fosse levada a cabo. “Eu não pensei nessa obra porque eu sou letrado. Eu pensei porque, quando eu tinha sete anos de idade, eu já carregava lata de água na cabeça. Eu sei o que o povo sofre sem água”, discursou na ocasião o ex-presidente a 50 mil pessoas, que acompanharam o lançamento na pacata cidade paraibana. Políticos e moradores presentes no grandioso ato decretavam Lula como o idealizador, o “pai” do projeto. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), em entrevista ao Brasil de Fato, apontou que “Lula levou muita água na cabeça, sabe o que é a seca. O povo sabe que foi Lula quem colocou essa obra no papel. Chega a ser ridícula essa posição do Temer”.

A “paternidade” da transposição vinha sendo discutida dias antes, a partir de uma postagem nas redes sociais feita pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência de Temer, Moreira Franco, afirmando que a ex-presidenta “Dilma não conseguiu entregar as obras” em seis anos, enquanto o governo Temer entregou em “seis meses”. Para a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), o evento daquele domingo, 18 de março deste ano, mostrou para o país, “que quem é o verdadeiro pai da obra é o Lula. Aliás, as pessoas vieram aqui, chorando, emocionadas, para dizer isso”, defendeu. “Muita gente veio falar comigo, dizendo: ‘Eles tentam enganar a gente, mas a gente sabe que quem fez essa obra foi o Lula’”, destacou na ocasião.

O cearense Junior Coutinho, 43 anos, que trabalha em uma ONG no estado vizinho, veio até a Paraíba só para acompanhar o evento com Dilma e Lula. “A transposição das águas do Velho Chico traz esperança e alento para todos nós, nordestinos. Se Deus quiser, cada vez mais, o Brasil vai reconhecer o trabalho desse grande nordestino [Lula] para o Nordeste e para o Brasil”, destacou. Pedro Limeira, paraibano de 46 anos, servidor público, afirmou durante o lançamento popular que “se existe um pai para essa obra, é Lula. A Dilma deu continuidade e o Temer apenas inaugurou”, avaliou. “A figura do Lula é uma figura emblemática, e não é de hoje. O Temer é que é o estranho no ninho”, completou o servidor.

FOCOS DE RESISTÊNCIA

Nem tudo são flores diante da transposição. Devido a suas consequências, a obra enfrentou resistência desde governadores que não se sentiram contemplados até de comitês de bacias hidrográficas e de movimentos populares, preocupados com os impactos da obra. Um dos principais opositores da iniciativa foi o bispo Luiz Flávio Cappio, do município de Barra, na Bahia, que fez até greve de fome contra o projeto. O Supremo Tribunal Federal (STF) também emitiu decisões desfavoráveis à obra e, de novembro de 2005 até dezembro de 2006, os trabalhos foram interrompidos algumas vezes. As ações questionavam o licenciamento ambiental do projeto, que, à época, ainda aguardava parecer do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama). Um dos maiores focos de resistência contra o projeto se concentrou no estado baiano. A promotora de Justiça Luciana Khoury, do Ministério Público da Bahia, é uma das figuras que questionaram as violações causadas na Bacia do São Francisco e que conseguiu paralisar a obra junto ao STF. “Nós conseguimos liminares nos dois processos e conseguimos suspender a obra durante dois anos”, lembra. Para a promotora, a transposição é um “empreendimento potencialmente causador de danos”. “[A obra] não podia deixar de ser verificada, acompanhada. Na época, a gente teve uma atuação muito integrada com os ministérios públicos de outros estados e também com o Ministério Público Federal. Com isso, nós fizemos um trabalho muito parceiro de conhecimento da proposta do projeto e identificação de irregularidades das normas; [avaliamos] se ele cumpria de fato com as etapas previstas pelas normas, do ponto de vista ambiental, e das normas de recursos hídricos”, explica a promotora. O grupo que a acompanhava teve acesso aos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs), notas técnicas de setores do Ministério Público Federal (MPF) sobre povos e comunidades tradicionais, além de pareceres de universidades, que mostravam possíveis lacunas do projeto no meio físico e no meio socioeconômico.“O projeto previa uma quantidade de pessoas impactadas, de comunidades impactadas, muito menor do que de fato aconteceu. Além de não ter feito estudos, por exemplo, dos impactos da fauna do rio, postergando estudos para a fase de implantação do projeto”, acrescenta Khoury.

Um dos grupos que atuou com a promotora contra os impactos da obra no rio foi o Comitê da Bacia do Rio São Francisco, que participa do Conselho Gestor da Transposição e é presidido por Anivaldo de Miranda. Segundo ele, a entidade perdeu “uma batalha”, pois “as discussões foram atropeladas nos comitês de recursos hídricos; aprovada pelo conselho nacional, de acordo com a confecção que o governo impôs”. Ainda de acordo com Miranda, “a obra deveria ser mais simples”. “O Comitê não fez sugestão, mas seria possível utilizar adutoras, principalmente para regiões críticas como Campina Grande [na Paraíba]. O comitê era favorável a soluções mais rápidas. Já existe um acúmulo de conhecimento, como as cisternas, as barragens subterrâneas”, completa o presidente do Comitê.

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Arte: Karina Ramos

Outras organizações, como o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), também criticaram o projeto. Em uma nota divulgada após a inauguração do Eixo Leste da obra, o movimento afirma “que não é o tipo de tecnologia para geração de energia ou captação de água que determina se elas são alternativas ou sustentáveis. O que determina, de fato, é ‘pra quê’ e ‘pra quem’ estas obras são construídas. Quem serão os beneficiados: o povo ou meramente as empresas do capital privado?”. Segundo o MAB, “no interior de sua concepção, como toda grande obra do capital, predomina o abastecimento ao agronegócio e às grandes indústrias localizadas nas regiões dos ‘portos’”. A organização lembra ainda que o empreendimento “desalojou milhares de famílias e violou os direitos humanos de centenas de comunidades, incluindo indígenas e quilombolas”. Outras preocupações que também permeiam as discussões dos críticos à obra são sobre a qualidade da água do Rio São Francisco, a manutenção da mata ciliar e uma série de programas que impediriam o lançamento de esgoto in natura, ou seja, sem tratamento, em diversos pontos do “Velho Chico”.

Arte: Karina Ramos

Segundo o Ministério da Integração, cerca de 38 Programas Básicos Ambientais foram empreendidos para minimizar os impactos da implantação das obras e potencializar os seus benefícios. Um deles, diz hoje a pasta, é o de Conservação de Fauna e Flora, “que fez parte do processo de licenciamento do empreendimento”. O programa seria responsável por monitorar e resgatar a biodiversidade vegetal e animal da região da Caatinga, mitigando os impactos negativos da obra.
Sobre a polêmica, Ciro Gomes avalia que “há uma confusão brutal” nas críticas feitas ao projeto de transposição do São Francisco. “Você não pode atribuir à transposição qualquer tipo de responsabilidade pelo problema do rio. O rio está assoreado, o rio está poluído, o rio está com as matas ciliares todas destruídas, sem que a transposição existisse”, defende. O ex-ministro afirma que a “transposição é o projeto de maior compensação ambiental da história do Brasil”. Movimentos populares e o Comitê de Bacia do rio São Francisco, contudo, apontam que os recursos para as obras de compensação estão paralisados e que alguns estados cortados pelo “Velho Chico”, como a Bahia, não dispõem de viabilidade financeira para tocar as obras. O Ministério da Integração explica, por sua vez, que o Programa de Recuperação de Áreas Degradadas “gerou modificações na área do entorno do canal e esses locais já estão contando com ações de recuperação”, que incluem plantações de mudas nativas da região”. A pasta promete ainda que “os demais trechos subsequentes do projeto serão recuperados de acordo com a finalização das obras”.

Assim começam as guerras pela água

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A revista Foreign Affairs traz artigo cuja leitura recomendo sobre as guerras pela água entre Turquia, Síria e Iraque: “Rivers of Babylon”. A Turquia construiu muitas barragens por todo o país, para produzir eletricidade, mas também para irrigação.

Quando viajei pelo leste da Turquia nos anos 1990 muitos novos projetos, partes do Southeastern Anatólia Project (GAP, em turco0, eram visíveis; e água recentemente retida em barragens era fornecida às regiões secas do sudeste mediante canais abertos. Muita daquela água era perdida por causa da evaporação, mas também porque as novas plantações usavam espécies que exigem água intensiva, numa região quente e em muitos pontos desértica. A água agora oferecida a fazendeiros turcos antes corria pelo Eufrates e Tigre, para a Síria e Iraque. Três anos secos na Síria, 2006-2009 induziram muitos aricultores a deixar as terras secas e mudar-se para as cidades, onde só poucos deles encontravam trabalho:

À altura de 2011, fracasso de colheitas por causa da seca empurrara cerca de 1,5 milhão de ex-agricultores a emigrar das próprias terras; essa legião de desenraizados virou fonte de recrutas para o Exército Sírio Livre e outros grupos como o Estado Islâmico (também chamado ISIS) e para al-Qaeda. Testemunhos recolhidos por repórteres e ativistas nas zonas de conflito sugerem que a falta de qualquer ajuda do governo durante a seca foi o fator central de motivação para a rebelião antigoverno. Além disso, estudo de 2011 mostram que as hoje fortalezas dos rebeldes em Aleppo, Deir al-Zour, e Raqqa estavam entre as áreas mais duramente atingidas pelo fracasso das colheitas.

A situação no Iraque é similar, se não pior. Grandes regiões perderam a base de sua agricultura e os agricultores pedem soluções e mais apoio.

Em Karbala, Iraque, agricultores estão em desespero e já consideram abandonar suas terras. Em Bagdá, as periferias mais pobres dependem da Cruz Vermelha até para a água de beber. Em algumas ocasiões, a Cruz Vermelha teve de fornecer 150 mil litros por dia. Mais para o sul, as áreas centrais do Irã, as maiores áreas alagadas de todo o Oriente Médio, estão desaparecendo, depois de terem sido reinundadas após a deposição de Saddam Hussein. Em Chibayish, cidade nas áreas alagadas que um dos autores desse artigo visitou recentemente, os búfalos e os peixes estão morrendo. Atualmente, a agricultura ali sustenta no mínimo 60 mil pessoas. Esses e mais centenas de milhares de outros enfrentarão dificuldades muito maiores, se os recursos d’água continuarem a definhar.

A falta de água não é a única razão para as guerras na Síria e Iraque. Mas torna esses países mais propensos a conflitos internos e mais vulneráveis à intromissão de atores externos. Os governos de Síria e Iraque podem fazer pouco para ajudar seus agricultores. Embora haja acordos sobre um fluxo mínimo de água a ser preservado entre Turquia, Síria e Iraque, não há meios pelos quais Síria e Iraque possam realmente pressionar a Turquia para que desimpeça o fluxo de água e preserve o fluxo fixado nos acordos.

Embora acordos vigentes entre Síria e Turquia devam garantir fluxo de 500 metros cúbicos por segundo, 46% dos quais vão para o Iraque, durante o verão os fluxos podem ser muito menores. Segundo Jasim al Asadi, hidrologista da Nature Iraque, quando o Eufrates alcança Nasiriyah no sul do país, é necessário um fluxo mínimo de 90 metros cúbicos por segundo, para uso municipal, industrial e agrícola. Às vezes, o fluxo cai para 18 metros cúbicos por segundo – razão pela qual não surpreende que as áreas alagadas estejam diminuindo rapidamente. Antes da construção da maior barragem nos anos 1970s, o fluxo médio no Eufrates era de 720 metros cúbicos por segundo. Agora, é de cerca de 260 m³/s quando entra no Iraque.

Quase dois terços do fluxo que o Iraque recebia já não chegam. Não há meio para substituí-lo. Além disso, a pouca água que está fluindo agora pode acabar rapidamente:

As barragens na Turquia, que já ultrapassam 140, têm muito maior capacidade de armazenamento que as que ficam a jusante. E quando as novas barragens turcas estiverem completadas em poucos anos, cerca de 1,2 milhão a mais de hectares serão irrigados dentro da Turquia – aumento de oito vezes, em relação ao que há hoje.[1]?…??Dada a relativamente melhor saúde hídrica da Turquia, seria razoável supor que o país pararia de construir barragens que tanto dificultam a sobrevivência dos países vizinhos à jusante dos rios. Mas o país fez exatamente o oposto, e planeja concluir 1.700 novas barragens e açudes dentro de suas fronteiras.

A matéria da Foreign Affairs nada diz sobre outro projeto turco que desvia ainda mais água para longe de seus vizinhos do sul. Em 1974 a Turquia invadiu e desde então ocupou o norte de Chipre. Os moradores gregos nativos daquelas áreas ocupadas foram dizimados em processo de “limpeza” étnica, e 150 mil turcos foram transferidos da Turquia e implantados naquela terra grega. E a Turquia construiu agora aquedutos para fornecer água do território turco às áreas ocupadas da ilha:

Um aqueduto recentemente concluído, que cruza o fundo do Mediterrâneo, levará 75 milhões de metros cúbicos de água fresca anualmente, da Turquia para o norte, isto é, para a parte turca da dividida ilha de Chipre. A água que chegará pelo aqueduto tornará os turcos cipriotas, que já recebem subsídios de Ancara para sua sobrevivência econômica, ainda mais dependentes da Turquia. Um cenário é, assim, que por estarem mais intimamente ligados ao continente, os cipriotas turcos terão menos liberdade quando negociarem a reunificação com os compatriotas cipriotas gregos, o que tornará difícil alcançar alguma solução.

Outro projeto turco, que vai e vem ao longo dos anos, é construir aquedutos e gasodutos até Israel, numa troca de gás israelense por água turca. Água que, além de outras utilidades, faria terrível falta na Síria e no Iraque. Precisamos de um processo de solução global, com instrumentos para fazer valer os acordos, para regular os fluxos naturais de água através de fronteiras. Do contrário, haverá grave ampliação das guerras entre países que usam água extensivamente em seus próprios territórios, enquanto países localizados à jusante dos rios morrem de sede.

A situação de Turquia, Síria, Iraque não é a única guerra pela água que há hoje no mundo. Paquistão e Índia lutam pela Caxemira ocupada pela Índia, onde estão as nascentes do sistema do rio Indo. O Indo é a água que mantém vivo o Paquistão, e a Índia tem usado o controle que tem sobre a Caxemira para pressionar o Paquistão. A próxima guerra entre Índia e Paquistão pode estar a uma seca de distância; e pode ser guerra nuclear.

Outra guerra pela água está fermentando entre Uzbequistão e Tadjiquistão. A Etiópia está construindo uma megabarragem no Nilo, que ameaça o principal suprimento de água do Egito. Nada garante que o Egito permita que a construção chegue ao fim. Todos esses casos já levaram ou levarão a guerras entre países ou a guerras civis por causa da água (da falta dela). O fluxo de água entre países é uma das questões que carecem de governança global. Um livro de regras e um corpo judicial global que determine que todos os povos ao longo de um curso de água devem beneficiar-se dele. Megaprojetos como o GAP na Turquia teriam de ser julgados por aquele corpo judicial e suas regras teriam de ser apoiadas em poderes coercitivos significativos. É isso ou, se não for isso, haverá muitas guerras, muito intensas, de disputa pelo acesso à água.