Como se privatizam as águas do Brasil

[TEXTO ORIGINAL]

A rua se transformou em um cenário de guerra. A fumaça e o barulho desorientadores das bombas de efeito moral se somavam aos estampidos produzidos por gatilhos a todo o momento acionados para liberar balas – de borracha, de plástico e até de chumbo. A visão era dificultada por outras bombas, de gás lacrimogêneo, e a entrada de um certo prédio público foi cercada de barreiras. De lá, saíam fortes jatos d´água apontados na direção de um carro de som. A perseguição se estendeu e dois veículos blindados, conhecidos como “caveirão”, avançaram por outras vias do centro do Rio de Janeiro. O noticiário chamou o acontecido naquela tarde de sol de 9 de fevereiro de “batalha”, palavra que originalmente remete ao combate militar entre dois exércitos inimigos. Na mira de todas essas armas, no entanto, não havia outro exército. Tampouco, de um ponto de vista republicano, as mulheres e homens, jovens e idosos que ali se agruparam deveriam ser encarados como “inimigos”.  Mas assim foi feito. E, a partir do dia 15, quando a autorização para o envio da Força Nacional de Segurança Pública foi dada pelo governo federal, aqueles que defendiam a privatização da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) se cercaram – literalmente – das condições necessárias para aprovar a medida. No dia 20 de fevereiro, com galerias vazias e cordão policial de 500 homens montado no entorno da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj), os deputados autorizaram o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB) a vender todas as ações da empresa.

Passado pouco mais de um mês, a água foi novamente objeto de disputa, mas de um tipo diferente. Uma década após as obras começarem e mais de cem anos depois de irromperem no imaginário político nacional como solução para as dificuldades trazidas pela terra árida e pelo clima seco que afetam a vida de gerações de nordestinos, a inauguração da transposição do rio São Francisco aconteceu. Ou melhor, inaugurações. No dia 10 de março, o presidente Michel Temer acompanhado de uma enxuta comitiva participou da cerimônia oficial de abertura do trecho que leva as águas do Velho Chico para Monteiro, na Paraíba. No dia 19, mulheres, homens, moços e velhos se aglomeraram na praça da cidadezinha para participar da inauguração extraoficial, que tinha no palanque os ex-presidentes Lula e Dilma Rousseff. Fato histórico carregado de simbolismo, a transposição evidenciou a “batalha” travada no coração do poder nacional e regional que tem na mira 2018.

Cada qual a sua maneira, os dois eventos dizem muito sobre como o Brasil pensa e gere suas águas. Isso porque a transposição, feita em nome das pessoas, talvez não seja para elas. E a venda da Cedae, feita em nome da recuperação financeira do Rio de Janeiro, tem tudo para ser um tiro no pé. Os alertas são feitos por especialistas e têm como pano de fundo a mais ampla agenda de privatizações da infraestrutura pública de saneamento da história do país – que inclui desde companhias estaduais veteranas até a gestão dos recém-inaugurados canais da transposição do São Francisco – e prevê ainda mudanças no marco legal do setor. “Sob muitos pontos de vista e de diferentes formas, essas medidas vão acirrar os conflitos por água no Brasil”, afirma o engenheiro sanitarista Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

A via da imposição

A Cedae é a segunda maior empresa de saneamento do Brasil. Com 75 unidades de tratamento de água, 20 de tratamento de esgoto e uma rede de distribuição de 14 mil quilômetros que abastece aproximadamente 12 milhões de pessoas residentes em 64 dos 92 municípios do Rio, a estatal apresenta um histórico de lucros que geram dividendos ao governo fluminense. Até o terceiro trimestre de 2016, o lucro líquido – ou seja, o faturamento apurado depois do pagamento de impostos e taxas – foi de R$ 165 milhões. Em 2015, ano da crise hídrica, ficou em R$ 248,8 milhões. Em 2014, bateu recorde e alcançou R$ 460,3 milhões. Nos últimos dez anos, esse número ultrapassou R$ 2 bilhões.

Com um déficit orçamentário previsto em R$ 26 bilhões apenas em 2017, o governo do Rio decretou estado de calamidade financeira em junho do ano passado. O desastre das contas públicas nas gestões do PMDB fluminense abriu espaço para medidas excepcionais, como sucessivos atrasos no pagamento dos salários de servidores, aposentados e pensionistas. E também foi o pontapé inicial para um controverso processo de renegociação da dívida com a União. A privatização da Cedae foi apresentada pelo governo federal como exigência para socorrer o Rio. “Não há um plano B”, sentenciou o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, sobre o acordo firmado entre Pezão e Temer no dia 26 de janeiro. O documento traz uma longa lista de medidas que precisam ser cumpridas pelo governo fluminense para que este possa adiar o pagamento dos débitos com a União. Válido até 2019, o acordo projeta para o período um déficit que ultrapassa R$ 60 bilhões. Um número superlativo que, contudo, não chega nem perto do total de benefícios fiscais concedidos pelo PMDB do Rio ao setor privado que, segundo um relatório dos auditores da receita estadual, somou R$ 138 bi desde 2007, ano em que o ex-governador Sérgio Cabral assumiu o Executivo. O político está detido na penitenciária de Bangu desde novembro do ano passado. É acusado, dentre outras coisas, de integrar um esquema de propina em troca da concessão de benefícios fiscais.

Tendo por moldes tais números, personagens e circunstâncias, o acordo bilateral lançou as bases para que o governo federal estendesse as condições aceitas pelo Rio para o restante do país. Em 23 de fevereiro, o ministro da Fazenda enviou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei Complementar (PLC) 343, que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal. No texto, a privatização de estatais de saneamento, energia e bancos são contrapartidas exigidas pelo governo Temer para renegociar as dívidas dos entes federados. O PLC 343 estava pronto para ser votado no plenário da Câmara dos Deputados desde 29 de março, mas encontrou resistência dos partidos de oposição, de vários governadores e até de quem também decretou calamidade financeira em seu estado. É o caso de Minas Gerais.

“Por que a gente privatizaria empresas que estão bem e dando resultados, como a Cemig [energia elétrica], a Copasa [saneamento] e a Codemig [desenvolvimento]? O próprio caso da Cedae. O valor da Cedae mal cobre um mês da folha de pagamento do Rio de Janeiro. Vai privatizar para quê? A não ser que o governo federal assuma que isso não tem nada a ver com ajuste e que seja decisão ideológica”, declarou o governador mineiro, Fernando Pimentel (PT), em entrevista ao jornal Valor Econômico (02/03). “Podemos privatizar se isso for mais útil para a prestação de serviços”, continuou ele, arrematando: “Agora, sermos obrigados a privatizar?”.

Fechando a lista dos entes federados em estado de calamidade financeira está o Rio Grande do Sul. Por lá, o governador Ivo Sartori (PMDB) tem mantido posição ambígua. Assim como fez o Rio, enveredou por uma negociação bilateral com a equipe de Temer e, tal qual Pezão, foi presença assídua em Brasília durante as votações do PLC 343. Contudo, nem a Companhia Riograndense de Saneamento (Corsan) nem o Banrisul, banco do Estado – definidos como “joias da coroa” pelo ministro da Casa Civil, Eliseu Padilha – estão no rol das estatais que Sartori admite vender para renegociar sua dívida com a União, segundo a assessoria de imprensa do governo gaúcho informou à Poli no início de abril.

Contudo, com o pacote aprovado, Minas, Rio Grande do Sul ou qualquer Estado que precise renegociar dívidas no futuro fica obrigado, por lei federal, a privatizar o saneamento. “Esse projeto vai abrir a porteira para eles fazerem o que bem entendem”, comenta Ary Girota, delegado sindical da Cedae, que, junto com outros trabalhadores da estatal, tentava influenciar deputados federais a barrarem o projeto. Até o fechamento desta reportagem, as perspectivas não eram as melhores. Depois de sucessivos adiamentos, o texto base, que incluía as privatizações no saneamento, foi aprovado pela Câmara em 10 de maio e as propostas que tentavam retirar esse tipo de contrapartida foram derrotadas. Agora, o texto segue para o Senado. O Regime de Recuperação Fiscal libera os estados de pagar o que devem à União por três anos, prorrogáveis por mais três, e prevê ajuda para renegociação de dívidas com bancos.

“O atual governo está radicalizando a proposta neoliberal. Para isso, faz chantagem com os Estados, impõe como condição para renegociar as dívidas a privatização não só das companhias de saneamento, mas de quaisquer outras estatais que ainda existam. É um jogo pesado”, comenta o engenheiro Luiz Roberto Moraes, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Considerado um dos maiores especialistas na área em atividade no país, ele completa: “Nunca houve um processo tão avassalador de privatização do saneamento no Brasil”.

As águas debaixo da Ponte

O veredicto decorre da constatação de que a agenda do governo federal não se limita à imposição de contrapartidas para renegociar as dívidas estaduais. Esse seria o polo negativo de um amplo espectro de medidas que, segundo seus proponentes, são necessárias para a retomada do crescimento econômico do país. O cerne desse pensamento está no documento “Uma Ponte para o Futuro”, lançado pelo PMDB no longínquo mês de outubro de 2015, que afirmava ser “fundamental” para o desenvolvimento brasileiro a execução de uma política “centrada na iniciativa privada, por meio de transferências de ativos que se fizerem necessárias, concessões amplas em todas as áreas de logística e infraestrutura, parcerias para complementar a oferta de serviços públicos”. No seu primeiro dia no Planalto, ainda como presidente interino, Michel Temer editou uma medida provisória que daria sustentação a esse processo, criando o Programa de Parcerias em Investimento (PPI). Aprovado pelo Congresso em setembro como lei (13.334), o PPI abarca concessões à iniciativa privada de aeroportos, rodovias, portos, ferrovias, mineração, energia. Em um país onde 95% do saneamento dos municípios é operado por empresas ou autarquias públicas, não foi exatamente uma surpresa que esse setor fosse um dos primeiros alvos da política de desestatização.

O saneamento básico é composto, no mínimo, por quatro componentes: abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo das águas pluviais e limpeza urbana. “Desses, os mais atraentes para o capital são o abastecimento de água e o esgotamento porque, tradicionalmente no Brasil, são serviços cobrados por meio de tarifas – e isso é visto como uma oportunidade de negócio. Então, a pressão do capital é permanente no sentido de abrir um novo mercado para si. E este governo não decepcionou: com o PPI inaugurou a maior investida da história brasileira para colocar o controle das companhias estaduais de saneamento na mão da iniciativa privada”, situa Moraes. Não que as empresas não atuem há muito tempo no saneamento, explica o professor da UFBA. “Mas  isso acontecia na fabricação de materiais e equipamentos, na elaboração de projetos e das próprias obras de engenharia”, explica. Não por coincidência, as grandes empresas brasileiras do saneamento foram criadas como subsidiárias de empreiteiras como Odebrecht e OAS. “O saneamento básico passou a ser um novo ambiente de negócios em que além de executar a obra, a empresa ainda lucra operando aquele sistema”, diz.

Mas, acima de tudo, o saneamento se mostrou um bom negócio para empresas privadas – não só no Brasil como ao redor do mundo – devido a uma característica especial que o distingue de outros serviços, como a telefonia por exemplo. Isso porque o saneamento é um monopólio natural. Uma empresa de água e esgoto dispõe de uma infraestrutura capaz de realizar desde a captação no manancial, passando por barragens e adutoras que levam a água dali para as estações de tratamento. A água própria para consumo humano segue para reservatórios urbanos, de onde é bombeada pela rede de distribuição. Só aí chega na torneira das casas. Depois de usada, a água se mistura com resíduos e vira esgoto. “Você não tem duas, três redes de água e esgoto na mesma rua para poder escolher entre o serviço da empresa A, B ou C. Ficaria inviável economicamente, então você tem uma única tubulação e uma única empresa para operar aquilo ali. Na telefonia tem concorrência, você pode contratar diferentes empresas, mas no saneamento o usuário não tem opção”, explica Moraes.

A captação via rede específica, o tratamento e a disposição adequada do esgoto são considerados calcanhares de Aquiles do país que, de resto, ainda não universalizou o abastecimento de água. Segundo dados mais recentes do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) referentes a 2015, apenas metade dos brasileiros têm acesso à coleta de esgoto, enquanto 83,3% são abastecidos de água. Essas estatísticas são o principal trunfo do governo e dos empresários, que argumentam que o setor público falhou na universalização dos serviços e está na hora de o setor privado assumir sua prestação. Além das alegações mais gerais de ineficiência da gestão pública, a defesa da privatização do saneamento se sustenta na crise econômica, uma vez que nem Estados, nem o próprio nível federal teriam condições de investir na expansão e melhoria dos serviços na atual conjuntura.

E, assim, o círculo se fecha. Se a renegociação das dívidas se baseia em uma imposição às claras, o PPI tem um caráter mais sofisticado ao induzir as parcerias com o setor privado como único caminho para viabilizar o aporte de recursos para o saneamento. A questão, pondera Moraes, é que no caso do PPI os recursos imediatamente aportados são públicos e não privados.

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) é o braço operacional do PPI. De lá sai o financiamento de até 80% do montante total que a iniciativa privada irá “investir”. Os empréstimos feitos a juros subsidiados podem ser pagos num prazo de até 20 anos. “Sistemas de água e esgoto exigem altos custos de implantação que, historicamente, em todos os países do mundo, foram providos pelo Estado. Se o Estado brasileiro banca 80% do investimento, qual a justificativa para a entrada do setor privado?”, questiona Moraes, que define o modelo em voga no Brasil como “capitalismo sem riscos”: “O “parceiro” privado acaba usufruindo bastante dos recursos públicos através de linhas de crédito a juros baixíssimos, aumentando a sua mais-valia, se apropriando, então, desses recursos. E uma vez no exercício da exploração dos serviços públicos de água e esgoto, ele praticamente determina o que vai ser feito, quando vai ser feito, como vai ser feito, para quem vai prestar o serviço, para onde se vai expandir. Entre uma população de baixa renda na periferia e uma população de renda média e alta, o ‘parceiro’ privado prefere a segunda, que tem uma maior capacidade de pagamento”.

Em outubro do ano passado, a adesão ao PPI foi formalizada pelos governadores de 18 estados: Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia, Maranhão, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Tocantins, Paraná, Santa Catarina e Rio de Janeiro (que foi o primeiro a entrar no Programa e também o primeiro a sair dele por motivos que até hoje não estão muito claros). De lá para cá, o BNDES se empenhou na abertura de editais de licitação para contratar consultorias privadas que farão o diagnóstico da situação de cada estado. Desses estudos saem o que o banco chama de “modelos de parcerias”. Hoje, o controle das estatais de saneamento pode passar para a iniciativa privada de diferentes formas: concessão plena, concessão parcial, parceria público-privada, venda de ativos e até a pouco conhecida alocação de ativos, quando, por exemplo, uma empresa privada toma emprestado dinheiro público para construir uma estação de tratamento de água e esgoto e arrenda depois essa estrutura para a companhia estadual, como se fosse um aluguel.

O banco tem demonstrado velocidade na contratação das consultorias. Os pregões do primeiro lote que reuniu seis Estados – Amapá, Alagoas, Maranhão, Pará, Pernambuco e Sergipe – foram realizados em março. Os preparativos para os pregões do segundo lote – formado por Acre, Ceará, Paraíba, Rio Grande do Norte e Santa Catarina – tinham começado naquele mês. Os processos de Amazonas, Bahia, Paraná, Piauí e Tocantins ainda estavam em preparo. O único estado que não seguia o trâmite foi Rondônia, que preferiu contratar uma consultoria por conta própria.

Os recursos públicos disponibilizados para a contratação dessas empresas poderiam ser usados para financiar o planejamento do setor público, defende Moraes. Segundo ele, um plano municipal de saneamento básico custa em média R$ 300 mil. O plano cumpre o papel de fazer o diagnóstico da situação e a projeção de como alcançar metas futuras de ampliação da cobertura e é feito com participação da população. Nos cálculos do professor se os R$ 19,2 milhões direcionados pelo BNDES para contratar a consultoria de Alagoas, por exemplo, fossem usados para financiar planos municipais, 64 das 102 cidades do estado poderiam ser atendidas. Em Sergipe, 50 de 72 cidades poderiam financiar seus planos. “Eu peguei o volume de recursos para os seis Estados do primeiro lote e concluí que daria para fazer plano para 382 municípios com o mesmo valor. Quando um prefeito bate na porta do governo federal pedindo recursos para elaborar seu plano, o governo fala que não tem dinheiro. Estamos demonstrando que existe, sim, dinheiro mas que a opção política é financiar a privatização”, sentencia.

A previsão do BNDES é que os primeiros leilões dos serviços de saneamento ocorram no começo de 2018. O otimismo pode ser infundado, já que entre aderir ao PPI e fazer os leilões vai um longo caminho. “É preciso acreditar que todos os governadores vão conseguir aprovar leis autorizando nas respectivas assembleias legislativas. E que nem os municípios, nem a sociedade civil vão reagir”, diz Moraes.

Na Paraíba, a mobilização fez o governador mudar de ideia. O estado protagonizou em abril a segunda baixa do PPI de uma maneira, digamos, peremptória. “Como demonstra a história recente, dadas, sobretudo, as desigualdades socioeconômicas e regionais já crônicas em nosso país, as políticas irrefletidas de privatização de serviços básicos tendem a oferecer falso e momentâneo alívio financeiro aos entes públicos e a promover efeitos colaterais pelos quais o próprio Estado é responsabilizado. Assim, não é raro ocorrer em seguida a privatizações restrições de acesso a bens de interesse social, além de uma desequilibrada busca pelo lucro, o que penaliza a população como um todo”, afirmou o governador Ricardo Coutinho (PSB) em uma carta aberta endereçada aos cidadãos da Paraíba.

No texto, ele argumenta que a Companhia de Água e Esgotos (Cagepa) teve superávit de R$ 20 milhões em 2016, mas acrescenta que a importância da estatal não se resume aos valores da arrecadação obtida. “A Cagepa não visa ao lucro; embora tenha a obrigação de ser equilibrada financeiramente. Sua função é a de prestar serviços públicos acessíveis e de qualidade quanto ao abastecimento de água e ao tratamento sanitário para toda a população. A relevância de seu superávit está no fato de que – mesmo num quadro de gravíssima estiagem, com 45 municípios em absoluto colapso hídrico e muitos outros em regime de racionamento – ele revela a sustentabilidade e a eficácia da empresa, desde que o governo promova as garantias e as adaptações gerenciais necessárias”.

Em Sergipe, parlamentares de vários partidos realizaram uma audiência pública em março que foi considerada a maior da história da Assembleia Legislativa do Estado com mais de mil participantes que se espremeram dentro e até do lado de fora do prédio. Como desdobramento, outra audiência foi feita pela seção regional da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que chamou os senadores e deputados federais de Sergipe, além de organizações da sociedade civil. O resultado do encontro foi uma posição contrária à privatização da Companhia de Saneamento (Deso). “Lá em Sergipe está havendo uma reação à altura do movimento social, do movimento sindical, do movimento popular, do movimento ambientalista, das diferentes igrejas contra a privatização da Deso. Se não houver uma pressão social grande em cada um dos estados, acontece o que aconteceu no Rio de Janeiro”, alerta Moraes.

Cedae: vitrine e vidraça

O Rio de Janeiro foi pioneiro na implantação do saneamento no Brasil. O sistema de captação de água e tratamento de esgotos da cidade foi feito ainda no período imperial pela City, uma empresa inglesa privada. “Essa empresa perdeu a concessão exatamente porque não cumpriu as cláusulas contratuais de expansão e de qualidade, então nada disso é novidade. Faz parte da história do saneamento”, afirma Alexandre Pessoa, professor-pesquisador da EPSJV/Fiocruz. De lá para cá, diversos governos tentaram privatizar o saneamento. “Por que isso não ocorreu? Há um histórico de resistência da população à privatização desses serviços por entender que uma consequência inevitável é o aumento tarifário, já que se trata de um monopólio natural”, retoma o engenheiro. “As tentativas de privatização da Cedae começaram na década de 1990 com o governo Marcelo Alencar [PMDB], que vendeu diversas estatais. Não tiveram êxito com a Cedae. Naquele momento, a população tinha clara a importância de uma empresa de saneamento que, mesmo com problemas, é pública e tem como única função atender a população e não os acionistas”, contextualiza, por sua vez, Ary Girota, delegado sindical da estatal.

Desta vez, no entanto, a reação popular à privatização não veio no tom esperado. As respostas para isso são muitas. Na opinião de Girota, depois de várias tentativas frustradas de privatização direta nos governos Garotinho, Rosinha e Cabral, a Cedae sofreu uma espécie de privatização por dentro, e passou a ser administrada sob uma lógica distanciada de sua missão. “Esses governos fizeram a expansão do sistema de água, mas a parte de tratamento de esgoto não acompanhou porque há um discurso interno de que esgoto dá prejuízo e, sob essa alegação, a Cedae abriu mão de operar sistemas de esgoto em vários locais. Com isso, esse braço da empresa foi sendo sucateado, foram deixando de investir, foram deixando cair a qualidade do serviço. Só que isso afeta diretamente a população, que não quer ter esgoto na porta de casa. E não há uma justificativa técnica para não se ter um investimento ao menos paritário entre água e esgoto. É uma opção política sucatear esse sistema para justificar a entrega, algo que não foi percebido, inclusive, pelas entidades sindicais, e que está sendo explorado hoje para defender a privatização”, avalia.

Contudo, o que sobressai quando se olha o cenário em que se aprovou a privatização da Cedae é a tentativa deliberada do governo de afastar a sociedade do debate. O projeto de lei 2.345 chegou no dia 3 de fevereiro à Alerj. Nele, o governador Luiz Fernando Pezão pedia a autorização do legislativo para privatizar a estatal e, antes mesmo de a venda se concretizar, captar um empréstimo de R$ 3,5 bilhões dando como garantia as ações da empresa. Nenhuma audiência pública sobre o tema foi realizada. Toda a discussão se deu com a Assembleia Legislativa do Rio protegida por uma espécie de barricada. As galerias do plenário foram fechadas ao público. Além disso, não houve discussão no próprio legislativo. A mesa diretora da Alerj havia divulgado um calendário em que os ritos da votação levariam quatro dias. Até porque os parlamentares apresentaram nada menos do que 211 emendas ao projeto. Mas elas foram rejeitadas em bloco pelos deputados da base do governo e o projeto acabou sendo votado em pouco mais de 40 minutos no próprio dia 20. Dos 69 deputados presentes na sessão, 41 foram a favor e 28 contra.

 

A votação relâmpago causou surpresa e revolta entre os manifestantes contrários à privatização. A “batalha” entre militares e civis se repetiu. Os trabalhadores improvisaram uma caminhada da Alerj até a sede da Cedae. Ao longo do trajeto, de cerca de três quilômetros, banheiros químicos instalados no centro do Rio para o Carnaval foram depredados. A resposta policial se deu com tiros e bombas. Diversas pessoas ficaram feridas e 24 foram detidas. “A repressão policial durante todo o processo foi muito violenta, desproporcional. Mobilizar as pessoas, e os próprios trabalhadores, não foi uma tarefa fácil”, diz Girota, que continua: “Na verdade, o que nós tivemos ao longo do processo de autorização da privatização da Cedae foi um Estado de exceção. Ficou muito claro nos dias dos atos. A cidade do Rio de Janeiro foi tomada por tropas federais para garantir a privatização. Não foi só a Força Nacional que veio, estiveram de prontidão também o Exército e os fuzileiros navais. E a PM fez o trabalho de repressão. Nós fomos colocados contra a parede – não só os trabalhadores como toda a população fluminense – como se estivéssemos defendendo uma ilegalidade e não o contrário. Foram eles que atropelaram o processo democrático, conduziram esse processo de uma maneira totalmente autoritária e cedendo aos interesses do Temer, que é o grande capitão desse processo todo. Estão entregando tudo e a Cedae é um desses componentes”. A lei 7.529, que permite a privatização da Cedae, foi sancionada por Pezão no dia 7 de março. A partir daí, o governo tem seis meses, prorrogáveis por mais seis, para contratar bancos federais para estruturar o modelo de venda da companhia. Segundo o deputado Marcelo Freixo (PSOL), a empresa vale entre R$ 10 e R$ 14 bilhões. Nos bastidores, ainda segundo ele, membros do governo afirmam que a negociação seria de cerca de R$ 4 bilhões, valor considerado irrisório já que a receita operacional da Cedae em 2015 foi de R$ 4,47 bilhões.

Nas apostas do mercado de quem pode levar a Cedae os mais cotados são Brookfield, Águas do Brasil e Aegea Saneamento. Uma análise detida sobre os três já revela muito da atual dinâmica empresarial em torno da água. Se o mercado brasileiro por muito tempo foi dominado pelas empreiteiras, com a Operação Lava Jato o cenário apresenta um mix cada vez mais transnacional. O comprador mais cotado é um fundo canadense (Brookfield) que em outubro do ano passado arrematou 70% da Odebrecht Ambiental por R$ 2,5 bilhões. Também está no páreo a Águas do Brasil – que opera os serviços em Niterói e Petrópolis – tem entre suas principais acionistas as construtoras Carioca Engenharia e Queiroz Galvão. Já a Aegea, outra forte candidata, é um caso à parte. A empresa tem como sócios um grupo brasileiro, o fundo soberano de Cingapura e a International Finance Corporation (IFC), instituição do Banco Mundial criada para apoiar o setor privado nos países em desenvolvimento. Procurado, o escritório do Banco Mundial no Brasil informou que, em 2012, a IFC concedeu um empréstimo à Aegea para ajudá-la em sua expansão pelo país, inclusive nas regiões Norte e Nordeste e que, desde então, a IFC e o Fundo Global de Infraestrutura da IFC injetaram mais de US$ 84 milhões por meio de empréstimos e de investimentos em participação acionária na empresa.

Os movimentos internacionais contrários à privatização do saneamento têm feito cobranças públicas ao Banco Mundial por conta da atuação da IFC. Historicamente, o organismo financeiro foi acusado de conceder empréstimos a países dando como contrapartida a privatização dos serviços. No debate brasileiro recente, um argumento usado com frequência por entidades que lutam contra as privatizações é o de que o Banco Mundial defendeu no passado a privatização, mas agora reviu esse posicionamento. Thadeu Abicalil, especialista de água e saneamento do Banco no país, esclarece que, para a instituição, não importa a natureza jurídica da prestação do serviço. “Desde que seja prestado de forma eficiente e equânime, chegue aos mais pobres. Esse é o ponto que a gente sempre quer passar, seja público ou privado”. E acrescenta: “No Brasil, nós estamos, no Banco Mundial, bastante convencidos de que o setor público sozinho não será capaz de alcançar esse nível de investimento nessa infraestrutura, precisará de parceria”.

Alexandre Pessoa acredita que, tendo como pano de fundo a falência do Estado, se criou uma grande oportunidade para privatizar sem os “embaraços” democráticos, como o espaço para o contraditório. “Não lembro de ter visto uma lógica tão perversa, porque ela interdita qualquer debate sobre a concepção do saneamento, sobre o que realmente deve ser discutido como objetivo do saneamento: a saúde pública. Esses aspectos, que já foram discutidos no passado, não entraram na pauta desta vez porque o processo está envolto em uma aura de chantagem”, avalia o engenheiro sanitarista. Ele lembra que em 2010, a Assembleia Geral das Nações Unidas declarou a água limpa e segura e o saneamento como direitos humanos essenciais. “Garantir direitos essenciais é uma função do Estado, estamos falando em serviços de natureza pública em que há um claro conflito de interesses. A lógica da rentabilidade se choca com a necessidade de atender a uma demanda reprimida não só de expansão do sistema de saneamento mas também da qualidade desse atendimento”.

Trabalhadores, movimentos sociais e partidos da oposição se uniram num esforço póstumo de tentar barrar a privatização da Cedae. Na esfera judicial, a sorte foi lançada no dia 29 de março, quando chegou ao STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) que questiona a validade do rito legislativo que autorizou a privatização da estatal. Os partidos PSOL e Rede – autores da Adin – argumentam que a aprovação feriu o princípio da deliberação suficiente. Entre os argumentos, eles citam que nenhum dos 64 municípios que serão afetados pela decisão foram consultados e que um tema estratégico não deveria ter sido submetido ao regime de urgência.

“Alterações profundas no regime jurídico da prestação dos serviços públicos de água e esgoto não podem ser feitas com fundamento apenas em preocupações de caráter orçamentário”, diz o texto da Adin, que continua: “Não houve no curso do processo legislativo qualquer exame sério quanto à aptidão de a Cedae prestar adequadamente os serviços públicos de distribuição de água e de esgotamento sanitário após a privatização. Desconsiderou-se, por completo, a experiência internacional recente, que tem demonstrado que as empresas privadas tendem a maximizar a sua margem de lucro, dando preferência aos investimentos em áreas com melhor retorno financeiro, em detrimento do atendimento de toda a população”. O texto se refere às 235 cidades que, desde 2000, retomaram a gestão do tratamento e fornecimento de água das mãos de empresas privadas. A lista inclui grandes capitais como Berlim, Buenos Aires e Paris, onde as duas maiores empresas privadas de água do mundo – as francesas Suez e Veolia – foram dispensadas pela prefeitura. Dentre as razões que levaram às reestatizações, estão investimento insuficiente, descumprimento de metas contratuais, aumento nas tarifas, pouca transparência e políticas de exclusão de populações mais pobres.

Além da Adin, uma proposta de plebiscito foi assinada por oito lideranças partidárias na Alerj. O projeto está na mesa do presidente da Assembleia. A proposta que tem mais chances de vingar vem do legislativo da capital. O vereador Renato Cinco (Psol) planeja a realização de uma assembleia popular para debater a privatização da Cedae no mês de junho. Contudo, até agora, a única dor de cabeça infligida ao governo estadual não veio dessas iniciativas, mas do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (PRB), que anunciou que poderia criar uma empresa municipal de água e esgoto. “A Cedae só existe devido a dois Rios: o Rio Guandu, que fornece a água, e o Rio de Janeiro, que é o maior cliente”, disse em fevereiro. Questionada pela Poli se mantém a ideia de criar a companhia, a prefeitura do Rio enviou nota afirmando que “defende que o município seja ouvido no processo de privatização da Cedae, uma vez que a cidade é responsável pela maior parte do faturamento da companhia” pois “é necessário saber quais benefícios esta transação trará”.

As companhias estaduais de saneamento funcionam com subsídio cruzado: os superávits das cidades maiores tampam os déficits dos municípios menores ou onde a implantação do serviço foi muito cara. Esse equilíbrio é o que permite a empresa atuar em um número maior de cidades. “Se o Crivella endurece e toma o Rio ele quebra a Cedae porque o que sobra não é o suficiente para fazê-la funcionar”, diz Luiz Roberto Moraes. A capital responde por 87% da receita da Cedae. O engenheiro explica que a Constituição diz que cabe ao município a atribuição de organizar e prestar diretamente o serviço de saneamento ou conceder a terceiros essa prestação. “Os municípios são os titulares, os donos do serviço. A Cedae é uma simples prestadora. E como dono, o município pode endurecer, não dar autorização, gerar conflito”. De acordo com Moraes, a pressão agora deve ser feita localmente porque para a privatização vingar será necessária a autorização das câmaras de vereadores. “Eles vão tentar cooptar os prefeitos, os vereadores, mas se a sociedade reagir eu acho que muita água pode rolar daqui para frente”.

 

Velho Chico, novos problemas

Nem mesmo a transposição do rio São Francisco ficou incólume à agenda de privatizações do governo federal. Desde outubro do ano passado, o Ministério da Integração Nacional noticia a intenção de criar parcerias público-privadas para a gestão dos canais que levarão as águas do Velho Chico para o semiárido nordestino. Em nota enviada à Poli, a pasta afirmou que já havia solicitado ao BNDES “estudos de viabilidade de parceria com ente privado para operação e manutenção dos canais” e acrescentou que havia recebido, por sua vez, uma solicitação da Secretaria Especial do PPI (que tem status de ministério) para prestar informações sobre o Projeto de Integração do Rio São Francisco, nome oficial das obras de transposição.

Com 477 quilômetros de extensão em dois eixos de transferência de água, o empreendimento promete abastecer 12 milhões de pessoas em 390 municípios nos estados de Pernambuco, Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. O Eixo Norte vai do município de Cabrobó (PE) até Cajazeiras (PB), mede 260 quilômetros e, segundo o governo federal, deve ficar pronto no segundo semestre. No dia 10 de março, uma parte do Eixo Leste foi inaugurado. Com 217 quilômetros, o canal vai de Floresta (PE) até Monteiro (PB).  As obras começaram em 2007, no segundo mandato do presidente Lula, com previsão de conclusão em 2012, já no governo Dilma Rousseff, que foi afastada do Planalto com aproximadamente 90% dos canais concluídos.

“Atualmente, a Codevasf [Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco] é a responsável pela gestão dessas águas. Mas isso ficou muito tempo indefinido e até hoje não há nenhum desenho de como seria essa gestão. Agora entra a discussão da privatização das águas da transposição. Com isso, você acha que essas águas vão para quem? Para acabar com a sede da população do Nordeste é que não”, avalia o engenheiro André Monteiro, do Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz Pernambuco).

Segundo o pesquisador, que se dedica a estudar os conflitos por água decorrentes das obras da transposição, o acesso à água no semiárido historicamente se baseou na concentração do recurso natural na mão de poucos e poderosos. A região tem 70% da sua geologia cristalina, ou seja, as rochas que dão origem ao solo estão praticamente na superfície. Quando chove, pouca água se infiltra no subsolo e há um escoamento muito intenso. Desde o Império, a estratégia foi tentar ‘segurar’ a água que escoava pelo solo através do represamento. Os grandes açudes construídos pelo poder público ou eram instalados dentro das terras de fazendeiros ou, depois de prontos, eram apropriadas por eles. A promessa do fim da sede foi, desde sempre, o motor da chamada ‘indústria da seca’ – um dos sustentáculos do coronelismo.

“Hoje a transposição é fato consumado. E a grande questão – tornada invisível de propósito – continua sendo discutir os projetos em disputa. Essa água vai para onde e será usada para qual fim? A vazão disponível será suficiente para tudo?”, questiona Monteiro. Segundo ele, uma pista foi dada pela Federação das Indústrias da Paraíba. Em fevereiro, a entidade promoveu um seminário sobre “gestão estratégica das águas”. O caso de ‘sucesso’ apresentado no evento foi a transposição do rio Colorado, nos Estados Unidos. Feita entre as décadas de 1930 e 1950, a obra serviu como impulso para a expansão da fronteira agrícola na região, que concentra grandes latifúndios monocultores. “A Federação deixou claro que está se articulando para transformar o semiárido num Colorado. É um projeto que tem tudo para conjugar concentração de água, de terra e de poder”, alerta o pesquisador.

Uma parte da conclusão de que a transposição do São Francisco é uma obra feita principalmente para atender a interesses econômicos se deve ao histórico do projeto. Sempre que entrevistado, o engenheiro João Suassuna, pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), retoma o ano de 2004, quando os debates estimulados pelo governo Lula levaram a recomendações técnicas que desagradaram Brasília. “O presidente queria saber como o São Francisco poderia contribuir para solucionar o problema de abastecimento de água no semiárido nordestino. Quarenta expoentes da hidrologia nacional passaram três dias em Recife em um evento que a SBPC [Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência] promoveu para discutir a transposição. Dessa reunião saiu uma proposta: o governo deveria investir na construção de uma infraestrutura que integrasse as diversas represas e açudes que existem no interior do Nordeste. Essa proposta considerava o São Francisco como uma fonte de abastecimento complementar e a transposição como uma decisão que deveria ser tomada somente após a conclusão dessas obras, quando haveria uma nova avaliação do déficit de água na região”, conta.

Isso porque, desde aquela época, já se sabia que o São Francisco tinha limitações hídricas. O máximo de vazão que o projeto pode fornecer são 127m3/s, que podem ser retirados quando a represa de Sobradinho estiver com 94% do seu volume preenchido. “Mas a cada dez anos, Sobradinho enche apenas quatro. Investiram até agora R$ 10 bilhões em um projeto que irá funcionar em sua plenitude 40% do tempo. É muito pouco”, constata Suassuna. A transposição hoje está retirando do rio 26,4 m3/s. E a situação se agravou: Sobradinho está com 15% do seu volume preenchido quando no final de abril, mês em que se encerra o período chuvoso, esse volume precisa ser de 60% no mínimo. Segundo o pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, a perspectiva é que Sobradinho atinja seu volume morto no final de novembro.

Esses números estavam no centro do diagnóstico do Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco (CBHSF). Os comitês de bacia são organismos colegiados em que representantes do governo, dos usuários e da sociedade civil arbitram conflitos pelo uso da água, dentre outras prerrogativas. Em 2004, o CBHSF impôs uma condição para aprovar a obra: que as águas da transposição fossem destinadas somente para o abastecimento humano e dessedentação animal – usos prioritários de acordo com a Lei de Águas. “Infelizmente essa deliberação foi literalmente tratorada no âmbito do Sistema Nacional dos Recursos Hídricos e aprovada no estilo do rolo compressor pelo governo à época, ameaçando reproduzir novo elefante branco em nossa megalômana cultura de grandes e problemáticas obras”, critica Anivaldo Miranda, atual presidente do Comitê, onde representa a ONG Instituto Ecoengenho. Ele informou que também em relação à decisão de privatizar a gestão dos canais o CBHSF não foi consultado.

“Quando as discussões começaram e o governo federal viu que a água da transposição ia ser usada apenas para abastecimento humano e dessedentação animal, levou o plano para análise em Brasília. Para surpresa de todos, o parecer voltou nos seguintes termos: o governo não aceitava apenas esses usos e aquela discussão não deveria ser feita no âmbito do Comitê de Bacia mas pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos onde, não por acaso, o governo tem a maioria dos assentos. E assim passou o projeto da transposição incluindo o uso para o agronegócio”, conta Suassuna.Outro órgão que faz parte dessa história é a Agência Nacional de Águas (ANA). João Suassuna conta que partiu de lá uma proposta em sintonia com o que já tinha sido sugerido pela SBPC. O Atlas Nordeste de Abastecimento Urbano de Água, de 2006, mapeou várias fontes hídricas e propôs que se fizesse sua interligação. “Essa alternativa tinha uma abrangência de 34 milhões de pessoas. Já a proposta da transposição visa o abastecimento de 12 milhões. A proposta da ANA custava, em 2006, R$ 3,3 bilhões. A transposição naquela época custava o dobro – R$ 6,6 bilhões –, valor que hoje bate os R$ 10 bilhões. Quando essas propostas foram apresentadas ao PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para buscar financiamento venceu a proposta mais cara, a que atinge menos pessoas. A gente lamenta – e lamenta muito – porque, visivelmente, a transposição do São Francisco não foi feita para abastecer populações”, diz o engenheiro.Especialista em convivência com o semiárido, Suassuna cita outros elementos que corroboram essa conclusão. Já foi construído um canal que liga o Porto de Pecém à represa do Castanhão, que vai receber as águas do São Francisco. “Para quê? Estão construindo uma siderúrgica em Pecém, a Ceará Steel, que sozinha consome tanta água quanto um município de 90 mil habitantes”, cita ele. Já André Monteiro lembra que ao longo dos canais, existem 160 sistemas de abastecimento de água de comunidades urbanas que estão a cinco quilômetros de cada margem. “Se houver uma comunidade a seis quilômetros, ela não vai receber água. E a população difusa, espalhada pelo interior, não tem nem compromisso [do governo] de que vai acessar essa água”, diz.

A região Nordeste enfrenta a maior crise hídrica de sua história. A estiagem, que já dura seis anos, é potencializada pela falta de planejamento e uso predatório do recurso natural. “O que está acontecendo hoje? Quando se constrói uma grande represa no Nordeste, a primeira coisa que se faz é uma irrigação desenfreada no seu entorno. Vazamentos acontecem e ninguém liga. Além disso, a demanda cresce: há 10 anos, a represa do Boqueirão abastecia Campina Grande e oito municípios. Hoje ela abastece 18 municípios além de Campina Grande. Boqueirão está com 2% apenas. Campina Grande está sendo atendida por frotas de caminhão pipa”, lamenta Suassuna. Em meio a tudo isso, a solução apresentada é trazer água do São Francisco. “Mas essa água vem de uma parte do rio que também já está praticamente seca. E quando chegar à represa, ela vai continuar sendo mal gerida”, aponta ele, que defende que o governo faça um levantamento das demandas de água para beber na região que está recebendo as águas da transposição e também ao longo da Bacia do São Francisco para  que se saiba exatamente qual volume do rio pode ser liberado em segurança. “Sem isso, podem estar levando um volume muito maior do que a capacidade que o rio tem de fornecê-lo. É possível que já estejam cobrindo um santo e descobrindo outro”.

 

Falar em água no São Francisco exige um olhar sistêmico que enxergue não apenas o rio, mas o aquífero que existe embaixo dele, as lagoas, os afluentes, a vegetação nas encostas. Desde as nascentes à foz, o rio sofre há décadas um processo de degradação agravado desde o final dos anos 1970 pela expansão do agronegócio para o oeste baiano, ponta de lança da fronteira agrícola conhecida como Matopiba, que abarca ainda Maranhão, Piauí e Tocantins. O aquífero Urucuia é responsável por mais da metade das vazões de base do rio São Francisco que chegam a Sobradinho. “Quando chove, graças à vegetação nativa a água infiltra e forma lençóis freáticos no subsolo e há um fluxo de água desses lençóis para a calha do rio São Francisco, que a gente chama de vazões de base. Esse fluxo acontece constantemente a centímetros por dia. O que está fazendo o pessoal do agronegócio? Estão cavando poços profundos e captando água diretamente do aquífero para abastecer sistemas de alto consumo, caso dos pivôs centrais de irrigação. Um pivô central pode consumir algo em torno de 2,6 mil m3 por hora. Numa região em que o fluxo d’água está acontecendo a centímetros por dia, retirar 2,6 mil m3 por hora faz com que essa vazão de base fique reduzida, ela chega ao ponto de interromper”, explica Suassuna.“O aquífero Urucuia é o que mantém o São Francisco vivo. Ele existe graças à cobertura vegetal nativa, que é o cerrado. O cerrado brasileiro é essa grande esponja, como se fala, que abastece oito bacias hidrográficas. Mas graças ao agronegócio, o cerrado só tem atualmente 40% de cobertura vegetal, ou seja, já destruímos 60% e é por isso que alguns especialistas falam na ‘extinção inexorável do São Francisco’ [a tese é de um grupo de mais de 100 pesquisadores que fizeram um estudo coordenado pela Universidade Federal do Vale do São Francisco]. Porque sem a cobertura vegetal, não tem alimentação dos aquíferos, aí você tem uma redução da vazão. Além disso, o solo sem vegetação produz o carreamento dos sedimentos para o rio causando o assoreamento”, alerta, por sua vez, André Monteiro.

A redução do volume de água aumenta a poluição das águas do Velho Chico. O projeto da transposição previa fazer tratamento sanitário. Uma Caravana de Saneamento promovida pelos ministérios públicos estaduais da Bahia, Sergipe e Alagoas percorreu 14 cidades da bacia do São Francisco que receberam obras. Os promotores notaram que o saneamento era uma das principais variáveis em termos de degradação e que a maioria dos municípios da região não tinha plano de saneamento básico. “Nenhuma estação de tratamento de esgoto está funcionando e até aterros sanitários que foram construídos tinham se transformado em lixão. Do ponto de vista da revitalização, o impacto foi nulo até o momento”, diz Monteiro, que participou de algumas caravanas.

O foco do pesquisador da Fiocruz, no entanto, é o impacto que as obras tiveram nas vidas das pessoas. “Grandes empreendimentos produzem experiências coletivas muito violentas. Afetam o meio ambiente, as terras, os meios de produção e os modos de vida, produzindo perdas materiais e simbólicas que, em geral, levam a sofrimento e agravos. Alcoolismo, depressão, abuso de drogas, prostituição. Diversos grupos e territórios têm sofrido em decorrência das obras da transposição. São indígenas, quilombolas e pequenos produtores. É importante entender que há conflito mesmo entre as pessoas que estão recebendo as obras. É uma coisa da qual pouco se fala”, sublinha Monteiro. A etapa atual do estudo é acompanhar os conflitos por essas águas. “Já tem invasões de terra. Por exemplo, empresários de Floresta [PE] interessados na produção de celulose estão em conflito com indígenas cujo território fica ao lado de um dos canais”.

Não por acaso, a água tem sido o epicentro de uma escalada de violência no país. O relatório ‘Conflitos no Campo Brasil 2016’, divulgado em abril pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), aponta que entre 2015 e 2016, as disputas por água aumentaram 27%, somando 172 casos. Desde que começou a registrar os dados, em 2007, a CPT calcula um aumento de 97,7% nesses embates, que estão atingindo cada vez mais pessoas. Em 2007, foram 164 mil. Em 2016 esse número saltou para 222 mil, um acréscimo de 35,8%. A CPT conclui que o cenário conflagrado é um desdobramento de duas lógicas de gestão, apropriação e uso da água: a econômica, que enxerga a água como commodity, e a dos povos, que têm na água um bem essencial à reprodução das condições dignas de vida.

“A grande diferença do Brasil no mundo é sua biodiversidade e suas águas. Nós temos biomas riquíssimos que são celeiros produtores de água. Estudos mostram como a floresta amazônica produz chuva e como o cerrado produz água. Mas a partir da inserção subordinada do país na economia mundial, nossa prioridade passou a ser produzir commodities: carnes, grãos, celulose, minérios. Estamos queimando, vendendo barato os nossos biomas e as nossas águas. É preciso rever urgentemente esse modelo”, defende André Monteiro. “Água, daqui para frente, tem que ser considerada uma questão de segurança nacional. Utilizar pivô central para produzir soja e esquecer que tem gente com sede é o mesmo que decretar o sacrifício do povo em nome do superávit”, conclui João Suassuna.

Mudanças no marco legal

De uma forma ou de outra, tanto as privatizações do saneamento quanto as apropriações da água pelo poder econômico convergem para um processo pouco conhecido que está em curso no país. Se a venda das companhias estaduais ou a concessão dos canais da transposição são as facetas visíveis da agenda federal, também faz parte dela uma face mais oculta: a flexibilização do marco legal que regula o setor. Sob a liderança da Casa Civil, o governo Temer defende uma série de mudanças normativas que visam garantir uma maior participação da iniciativa privada na prestação de serviços de água e esgoto. A movimentação mira a Lei do Saneamento (11.445), que completou 10 anos em janeiro de 2017.

Apesar de noticiar em seu site duas reuniões ministeriais feitas em outubro passado para debater ‘propostas para o saneamento’ e de confirmar à Poli a intenção de rever o marco legal, a Casa Civil não disponibiliza detalhes sobre essas alterações. Foi graças ao vazamento de uma apresentação intitulada ‘Diagnóstico Saneamento’, com a data de 14 de setembro, que associações profissionais e movimentos sociais congregados na Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental entraram em contato com o teor e a extensão da revisão.

Em sintonia com o PPI – que, não por acaso, foi lançado também em setembro –, o diagnóstico da Casa Civil fala em um “mercado de saneamento” que deve ser franqueado ao setor privado por meio de concessões, abertura de capitais e parcerias público-privadas para a construção e operação das redes de abastecimento e tratamento de água, esgoto e também resíduos sólidos. Para viabilizar as parcerias, cita a criação de linhas de crédito especiais para investimentos em saneamento no BNDES e na Caixa Econômica Federal.

O documento aponta a intenção de quebrar outras barreiras, como a lei dos consórcios públicos (11.107/05) que, segundo o texto, “favorece a assunção dos contratos por empresas públicas” e “dificulta a entrada de empresas privadas no mercado do saneamento”. E centra fogo em um dos principais resultados da Lei do Saneamento: o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab). Feito pelo governo com a participação da sociedade, o Plansab é considerado na apresentação da Casa Civil um “plano panfleto”, “focado em investimentos públicos” do PAC e “sem participação relevante da iniciativa privada”.

“O Plansab foi uma vitória. Ele estabelece o planejamento em todas as instâncias de governo e sua elaboração deve ser feita com participação da população. O Plansab não se manteve numa lógica tecnicista e apontou que o saneamento exige ações estruturais, que são as obras, mas também ações estruturantes, que são a gestão participativa e a educação que dão sustentabilidade aos sistemas. Sem isso, as intervenções de saneamento são condenadas à má operação e a uma dissociação com o cotidiano da população. E isso ainda está em curso, não pode retroagir, então qualquer alteração na Política sem consulta pública significa desmonte”, critica Alexandre Pessoa.

De fato, a sociedade civil não consta da lista de interlocutores ouvidos pela Casa Civil para propor essas e outras mudanças. O ‘Diagnóstico Saneamento’ fala em reuniões com as seguintes entidades: Associação Brasileira das Empresas Estaduais de Saneamento (Aesbe), Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp), Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Água e Esgoto (Abcon) e Instituto Trata Brasil. Este último tem entre seus apoiadores empresas como Aegea, Braskem, Tigre, Amanco, Coca-Cola.

Em nota enviada à Poli, a Casa Civil confirmou que as modificações que vem discutindo passam pela necessidade de alteração da legislação relacionada ao saneamento básico. O governo não respondeu a perguntas feitas pela reportagem a respeito das críticas feitas às privatizações no saneamento, nem deu detalhes sobre o cronograma de revisão do marco legal. A pasta se limitou a dizer que “a partir da constatação da situação do atendimento à população em saneamento básico no Brasil e dos indicadores nacionais em termos de acesso à água tratada, esgotamento sanitário, coleta de resíduos sólidos e manejo de águas pluviais (…) ouviu um amplo conjunto de atores do setor” e “elaborou um diagnóstico contemplando os principais entraves identificados para garantir o acesso da população aos serviços” e “buscar a sua universalização assim como a melhoria na qualidade da prestação dos serviços públicos”. Ainda segundo a nota, após a apresentação e validação do diagnóstico, foi constituído um Grupo de Trabalho interministerial que conta com a participação do BNDES e da Caixa.

Também em janeiro, a Lei das Águas (9.433) completou 20 anos. Ao longo do mês de março, quando se comemora o Dia Mundial da Água (22/03), foram pipocando notícias sobre alterações na legislação que deixaram os movimentos sociais em estado de alerta. O presidente da ANA, Vicente Andreu, garante, no entanto, que “não se trata de um processo de revisão” e a proposta é identificar lacunas para aperfeiçoar a Política Nacional de Recursos Hídricos. “Não tem nada a ver com a questão da mudança da lei de saneamento, muito menos com a questão da privatização”, disse ele à Poli, emendando: “Não tem nenhuma discussão de que a água vai ser um bem privado. Nenhuma relação de uma questão com a outra, a não ser a coincidência no calendário”.

O Banco Mundial foi convidado para participar da avaliação da Lei de Águas pela ANA e integra o grupo que inclui ainda a Secretaria de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente. Segundo Andreu, a participação do Banco se dá no âmbito de um programa da Agência chamado ‘Diálogos’, voltado para a realização de diagnósticos. Ainda de acordo com ele, a discussão acontece até novembro desse ano. Os resultados serão apresentados no 8º Fórum Mundial da Água, que será realizado em março de 2018 no Brasil, evento que, segundo o presidente da ANA, motivou a revisão. “Nós entendemos que é o momento propício para se fazer essa discussão. O evento pode servir para conseguir apoio no Congresso, já que uma boa parte [das mudanças] pode exigir uma nova legislação a respeito, um aperfeiçoamento da legislação”, diz Andreu.

Líquido e certo

O Brasil detém as maiores reservas de água doce do planeta. Tanto na superfície, com seus rios e lagos, quanto embaixo da terra. Em 2013, pesquisadores da Universidade Federal do Pará descobriram o Saga, sigla para Sistema Aquífero Grande Amazônia, principal reservatório subterrâneo de água do mundo. O subsolo do país abriga também o segundo maior manancial, o conhecido aquífero Guarani, que volta e meia aparece, em boatos na internet, sob ameaça de privatização do governo federal. A ANA esclareceu que os aquíferos são bens dos Estados, que podem outorgar a captação de água a empresas, como acontece no oeste baiano. “Para que o poder Executivo conceda a exploração de águas subterrâneas à iniciativa privada, seria necessário a aprovação de uma emenda constitucional pelo Congresso”, disse a Agência em nota.

“O uso privado de água subterrânea no Brasil já existe. Agora, privatizar um aquífero, ou seja, você vender aquele volume de água para um terceiro, não é permitido. O que você pode fazer é estimular o uso privado, inclusive, por empresas estrangeiras. Vivemos um momento de expropriação dos recursos naturais e a água é um desses recursos”, sita Otávio Leão, professor de hidrologia da Universidade do Rio de Janeiro (Uerj).  Seja para engarrafar água mineral, seja para produzir commodities, ele explica que a água é estratégica para a circulação de bens no capitalismo global. “E o Brasil tem muita água. Quando o Brasil está exportando soja, carne, enfim, as commodities de modo geral, na verdade é a água que possibilitou aquela produção. Então, por exemplo, a China economiza a água dela porque ela importa grãos do Brasil. A mesma coisa a Europa e vários países do mundo. Ou seja, quando o Brasil exporta a sua safra agrícola, que é recorde, ele está exportando a sua água. A água brasileira produz mercadorias que têm valor e são comercializadas no mercado global”.

A expectativa dos movimentos sociais cresce na medida em que se aproxima a 8ª edição do Fórum Mundial da Água. Será a primeira vez que o evento acontece na América Latina. “O Fórum é dos abutres que querem se apropriar dos bens comuns”, afirma Oscar Oliveira, liderança da Guerra da Água que aconteceu em Cochabamba na Bolívia no ano 2000. O episódio, conhecido no mundo todo, serve como síntese do curto-circuito gerado pela entrada da lógica econômica na gestão do recurso natural. Isso porque o contrato que concedia à empresa Águas de Tunari  – consórcio que tinha entre seus acionistas multinacionais – a operação do sistema de água e esgoto permitiu à empresa um aumento de 100% na tarifa. Além disso, o poder público simplesmente proibiu a população de captar água da chuva, deixando sem alternativas milhares de camponeses.

“Acredito que o processo de privatização no Brasil é similar ao de Cochabamba. O Banco Mundial impôs a privatização da água na Bolívia como condição para conceder um empréstimo de US$ 160 milhões para que o governo boliviano pagasse dívidas. Essa conduta continua. É uma forma muito dissimulada de impor à população a venda de um patrimônio público para pagar dívidas que o povo não contraiu”, comparou Oliveira, que participou em março de eventos contra a privatização da Cedae, no Rio. Para ele, o fato de o Brasil sediar o Fórum significa um grande desafio, na medida que é cada vez mais necessário visibilizar as lutas contra as transnacionais da água e do saneamento e as políticas privatistas. Ao mesmo tempo em que o evento oficial acontece, os movimentos sociais estão planejando um fórum paralelo para pautar as discussões da sociedade e denunciar as propostas empresariais.

“O Fórum é o atacadão da água doce. O mundo inteiro virá aqui fazer lobby e pressão. E ano que vem teremos eleições acontecendo com todo esse pano de fundo dos obstáculos ao financiamento privado de campanhas. Minha aposta é que eles vão jogar pesado para alinhar candidatos do Legislativo e do Executivo aos interesses deles”, diz Luiz Roberto Moraes, que alerta: “Esses grupos de fora estão chegando e se associando a grupos daqui com uma agenda: ampliar e dominar o mercado. Aí você bota à venda 18 companhias estaduais de água e esgoto. Esses grupos vão ver o que tem de filé mignon em cada uma delas, pegar os municípios rentáveis e deixar os deficitários para trás. E que deles se ocupem o poder público”.  O pesquisador caracteriza o cenário como preocupante: “É um desastre porque o público não tem mais aquelas cidades que dão lucro e fazem o equilíbrio financeiro porque elas foram para a mão dos grupos privados. Vai ser um prejuízo líquido e certo para a sociedade brasileira, e quem está no poder não está nem um pouco preocupado com isso”.

“O PODER NÃO ESTÁ NA CADEIRA DE UM CONGRESSISTA, MAS NAS RUAS”

[TEXTO ORIGINAL]

O ativista Oscar Oliveira, 59 anos, foi um dos integrantes da Coordenadora da Água, movimento que originou uma das lutas sociais mais importantes da história moderna da Bolívia, a Guerra da Água (2000), que fez aniversário neste mês de abril. O movimento, que teve a participação de nomes importantes do cenário político boliviano, como o então sindicalista Evo Morales, impediu que se privatizasse a água de Cochabamba. Oliveira foi líder do maior sindicato nacional, o Federación de Trabajadores Fabriles de Cochabamba, na década de 1990, mesma época em que Evo era líder do sindicato dos cocaleros. Juntos, participaram também da Coordenadora do Gás (Guerra do Gás, 2003) e várias outras manifestações sociais por quase dez anos.

Em 2006, quando Evo chegou à presidência, convidou o companheiro de luta para ser seu ministro do Trabalho. Mas Oliveira recusou o convite e vive até hoje como ativista de movimentos de base. “Considero que o poder, para mudar nossa vida, não está na cadeira de um congressista, mas nas ruas”, acredita. Hoje, dá assistência a crianças, filhos de campesinos em escolas rurais, apoiando processos produtivos e organizativos entre as escolas e as comunidades locais. Ao relembrar a vitória da Guerra da Água e analisar o quadro político atual da Bolívia, afirma: “ganhamos, mas perdemos”.

A entrevista a seguir foi feita em Morellos, México, durante uma palestra que o ativista dá todos os anos para jovens jornalistas e líderes de movimentos sociais de todo o mundo. O evento faz parte de uma escola autônoma que debate “como mudar o mundo” por meio da força organizada dos povos, escola em que Oliveira é professor desde 2005.

Fórum – Quando começou o seu envolvimento com lutas e causas sociais?

Oscar Oliveira – Acredito que a sociedade sempre está em movimento, mais do que movimentos sociais organizados. Vivo em um país que está constantemente em resistência civil, não somente pelos bens materiais, mas pelo bem da voz das pessoas e da dignidade humana… Mas comecei a questionar a sociedade boliviana quando morreu meu melhor amigo por uma bala perdida. Nós tínhamos 9 anos e estávamos na escola. Depois desse episódio, percebi que vivia em um cenário caótico. Lembro ainda de quando minha mãe, para sustentar a família pobre e de muitos filhos, cortou o cabelo grande que tinha por anos para vendê-lo em troca de comida.

Um segundo momento foi quando comecei a trabalhar em fábricas, aos 16 anos. Lá, tive contato com o sindicato dos trabalhadores e trabalhadoras. A partir daí, fui adquirindo certos valores e uma cultura comum à classe operária. Aprendi a pensar a longo prazo, em como ser disciplinado, a analisar quais são os obstáculos, a ter uma estratégia de ação e organização a qual antes não tinha consciência. Aprendi a importância de fazer a divisão de trabalho de acordo com a capacidade e sabedoria de cada indivíduo. Depois tive a oportunidade de fazer parte de movimentos de comunidades indígenas e campesinas na Bolívia.

Fórum – Como nasceu o movimento que resultou na Guerra da Água de Cochabamba?

Oliveira – O modelo vigente em 2000 no país era o da exploração do capital e monopólio do poder. Dos movimentos indígenas e campesinos, que sempre existiram na Bolívia, nasceu algo em comum a todos eles: a bandeira de luta contra a privatização dos bens nacionais, sobressaindo-se o tema da privatização da água em Cochabamba. A importância da Guerra da Água não foi somente recuperar o recurso natural como um bem do povo, mas houve uma dimensão política, econômica e organizacional que serviu de inspiração a muitos outros movimentos do período na Bolívia. Nós de Cochabamba demonstramos que era possível organizar e derrotar inimigos muito poderosos, como bancos, empresas internacionais, partidos políticos e demais instrumentos de repressão do Estado, como o Exército e a polícia.

A experiência em estratégias de resistência civil que os povos indígenas adquiriram em anos de repressão foi o fator principal. Tivemos que aprender a sobreviver na Bolívia, mesmo que poucas vezes tenhamos conseguido uma vitória de fato. Além disso, tanto na Bolívia como em outras partes do mundo, o capital nos havia colocado contra a parede de uma tal maneira que não tínhamos mais para onde retroceder. Tínhamos duas alternativas: avançar ou morrer. Decidimos avançar, mesmo sabendo que poderíamos morrer, porque nossas únicas armas para frear a exploração sempre foram nossos próprios corpos.

A interação entre as diversas bases do movimento também foi fundamental: associações de moradores, bases campesinas, comerciantes e os sindicatos estavam alinhados. O contexto social foi outro ponto positivo: o mundo moderno nos deu ferramentas para nos comunicar mais depressa e com mais gente. Hoje não tem como fazer um movimento sem pensar: como vou difundir essa informação? Como vou fazer visível meu movimento e meus inimigos ao resto do mundo?

Fórum – Quais são essas ferramentas do mundo moderno à disposição das lutas sociais?

Oliveira – Os instrumentos da internet, como o Facebook, são indispensáveis na estratégia de comunicação. Em 2000, não existiam as redes sociais, mas a internet nos ajudou muito. Lembro que a notícia da Guerra da Água de Cochabamba chegou à Islândia. O povo de lá fez um ato simbólico, que também chegou à Bolívia por meio da internet e que nos deu muita força: os trabalhadores finlandeses foram ao consulado boliviano no país e jogaram água no prédio com um carro de bombeiros. Foi muito simbólico receber um ato de solidariedade de um povo que não fala nossa língua e que está do outro lado do planeta. Esta rede de solidariedade mundial só é possível pelas ferramentas da internet. Na Guerra da Água, soubemos casar a comunicação básica do de boca em boca com a virtual para criarmos um grande processo deliberativo.

Fórum – Independente das ferramentas, quais pontos tornam um movimento social vitorioso?

Oliveira – Analisar o que está acontecendo política e socialmente no mundo; identificar quais são os pontos em comum que seu movimento tem com outros do mundo todo, pois as dificuldades geralmente são as mesmas em todo lugar; identificar os pontos em comum entre os vários inimigos que temos em nosso movimento e nos outros; se comunicar com esses outros movimentos para não nos sentirmos sozinhos.

Fórum – O que era a ideia do “Nós somos a coordenadora”, que aparece na Guerra da Água e, três anos depois, na Guerra do Gás?

Oliveira – Quanto mais a comunicação interna crescia entre todos os membros do movimento, mais sentíamos a necessidade de criar uma organização de liderança. Precisávamos estar informados e unidos em torno de uma proposta concreta, mas queríamos uma forma organizativa não convencional, em que não houvesse hierarquias verticais, com ordens de cima para baixo. Queríamos uma organização horizontal e participativa. Unidade, organização e mobilização eram as palavras do movimento. Assim, todos nós éramos coordenadores do movimento. Não tínhamos um único líder, pois todas as pessoas e em todas as partes do movimento poderiam assumir a liderança. Éramos pessoas de todas as idades, desde crianças, jovens, homens, mulheres até senhores e senhoras, e o poder estava com todas elas. Lembro-me de um dia em que prenderam todos os porta-vozes da Coordenadora daquele dia. Para a surpresa do Estado, declaramos: “que má sorte terem prendido esses membros. Mas o movimento continua, porque todos somos a Coordenadora”. E o movimento continuou, com mais força, inclusive.

Fórum – O presidente Evo Morales assume em 2006 com a esperança de mudança muito forte entre seus eleitores. As manifestações populares não acabaram, contudo. Como você avalia quais são as dificuldades de se manifestar popularmente na Bolívia de hoje?

Oliveira – Os governos anteriores a Evo tinham leis que criminalizavam os protestos sociais. Essas leis não prosperaram, obviamente. As repressões hoje são feitas de outra maneira, porém, de forma mais sutil: colocar barricadas nas ruas e cercar manifestantes. Eu diria que no governo de Morales estão se estabelecendo normas que penalizam as manifestações. Em 2009, por exemplo, o governo propôs um código de leis trabalhistas novo estabelecendo a possibilidade de serem presos dirigentes sindicais que impedissem o ingresso de trabalhadores que não concordassem com greves. A proposta não virou realidade porque os trabalhadores se manifestaram.

A Lei de Mineração, que estão querendo aprovar, é outro exemplo. Ela estabelece prisão para grupos ou comunidades contrários à extração de minérios em certas regiões. Há também perseguição, não somente aos opositores de direita do governo, mas também aos que criticam e questionam as políticas públicas perante o aparato judicial. Existem muitos opositores na Bolívia, hoje, respondendo processos… Algumas semanas atrás, Morales pediu desculpas pela atitude que estava tendo com os cocaleros [camponeses plantadores de coca que defendem a folha como símbolo da sua cultura, do qual Evo foi líder do sindicato] de ter bloqueado o país na época de luta desses camponeses. Ele disse que não se dava conta que o bloqueio afetava tanto a economia. Essa atitude foi, para mim, a prova de como o governo mudou sua visão perante a política social desde quando assumiu a presidência.

Em 2011, eu e mais 24 companheiros, que nos manifestávamos contra a construção de uma estrada que passaria na floresta amazônica, fomos acusados de tentar matar o chanceler da Bolívia. Estamos respondendo um processo até hoje. Digo, como um governo que sabe que isso não é certo, pode inventar um caso desse contra 25 dirigentes sociais só porque se opuseram a um modelo de desenvolvimento adotado pelo Estado?

Fórum – É um paradoxo para um governo progressista…

Oliveira – Sim, e esse paradoxo temos visto em quase todos os governos sul-americanos modernos. As mesmas ações do Estado com seus manifestantes têm ocorrido no Equador, no Brasil, em 2013, e no Chile segue vigente a Lei Antiterrorismo de Pinochet, por exemplo. Creio que é uma legitimação da criminalização dos protestos sociais sul-americanos frente à incapacidade desses governos em estabelecer diálogo com o povo.

Fórum – Então, o que mudou desde o que se viveu no contexto da Guerra da Água, em 2000, para os movimentos sociais contemporâneos?

Oliveira – Basicamente, o que mudou é que naquele tempo tínhamos muito claro quem era o inimigo: o capital internacional e os mesmos políticos que sempre estavam no poder. Hoje, as coisas estão um tanto complicadas e distorcidas. Temos um governo que veio da gente, dos sindicatos. Ele fala a nossa linguagem, conhece as nossas táticas de ação, sabe onde está o poder e por isso sabe manipular os espaços deliberativos. Toda a energia que vimos em movimentos como a Guerra da Água, que contagiava todas as pessoas, está acabada. Não existe mais essa força social que possa redefinir um horizonte, que seja capaz de recriar um espaço para discutirmos um problema social do país e criar agendas sociais. Os grandes movimentos da Bolívia de hoje foram captados pelo governo. O aparato estatal segue em uma estrutura vertical de poder, que está nas mãos de poucos, com uma Constituição criminal, repressora e autoritária… Os possíveis espaços de discussão não existem mais. Não há uma participação efetiva da população na tomada de decisões.

O mais grave para mim é a distinção ideológica que se tem feito: ou se está a favor do governo, ou se é um reacionário ou direitista. Como se existisse um único partido político e todo o resto fosse pró-capitalista financiado pela Embaixada dos EUA. Zerou a possibilidade de autonomia, de uma voz própria dos movimentos, sem que haja uma pressão ou gerência por parte do Estado. Isso sem falar no modelo econômico, baseado no extrativismo da nossa mineração, apoiado e financiado pelo Banco Mundial, uma instituição que sabemos que não é nem um pouco generosa. Hoje, o Banco Mundial aplaude as políticas sociais do governo na Bolívia.

Fórum – Morales veio do meio popular de manifestações sociais e sindicais da mesma época que você. Qual seu contato com ele hoje, tanto na condição de ex-líder sindical e de ex-companheiro de resistência civil?

Oliveira – Bom, eu e Evo nos conhecemos desde o ano 84 ou 85. A primeira vez que nos encontramos não foi em um momento muito agradável (risos). Era uma mobilização de cocaleros e Evo questionou o sindicato do qual eu fazia parte sobre número de trabalhadores que entraram na marcha com a gente. Para ele, deveríamos ter mobilizado uma quantidade maior. Tivemos uma discussão no meio da rua. Acredito que na ocasião ele desconhecia toda a história do movimento sindical e foi mais uma discussão ideológica de ambos os lados.

Depois desse dia, tivemos a oportunidade de trabalhar juntos nos anos 1990, quando o sindicato dos cocaleros se mudou para o prédio do sindicato que eu presidia, o Federación de Trabajadores Fabriles. A partir de 1996, fizemos muitas marchas juntos em proteção à folha de coca, a dignidade de trabalhadores e sobre a situação dos campesinos na Bolívia. Fizemos quatro marchas simbólicas em La Paz, em que caminhamos por 400 quilômetros. Estive junto de Evo até o ano de 2005, quando ele se juntou com outros movimentos sociais importantes na Bolívia, como o movimento indígena, e foi capaz de fazer uma grande mudança na política do país. Também estabelecemos vários espaços de luta e ação juntos, como a Coordenadora da Água e Coordenadora do Gás [Guerra do Gás, 2003].

Em 2006, no seu primeiro mandato, Evo me convidou para ser seu ministro do Trabalho. Não aceitei porque considero que o poder, para mudar nossa vida, não está na cadeira de um congressista, mas nas ruas. Nestes oito anos que se seguiram, tive poucas oportunidades de falar pessoalmente com Evo. A última vez foi um ano atrás, para tratar da liberdade de um companheiro sindical que está preso há mais de dois anos por se opor à estatização de uma empresa social, um ex-companheiro do próprio presidente que lutou conosco por 30 anos…

Se acho que Evo irá se reeleger nas eleições deste ano? Acho que sim, e também não quero que o governo fascista de antes volte ao poder. Mas o que temos que discutir, daqui em diante, na Bolívia e nos demais países vizinhos, é a crise de representatividade que o povo sofre. A luta não é mais entre direita e esquerda ou entre partidos políticos, é do povo e das lutas autônomas. Como diz uma escritora mexicana, não somos mais Estados-Nações, somos Estados-Corporações. Temos que pensar de maneira coletiva para mudar as coisas.

Cinco passos das ações vitoriosas da Guerra da Água

Passo 1 – Associações comunitárias colocaram bandeiras da Bolívia na entrada de suas casas. Aos poucos, as bandeiras começaram a chamar a atenção de moradores e turistas, que batiam nas portas para perguntarem o porquê do símbolo nacional em suas casas.

Passo 2 – Os moradores, preparados para a pergunta, respondiam que a água havia sido privatizada e explicavam como essa ação interferia de maneira negativa na vida de milhares de pessoas.

Passo 3 – Ao difundir de boca em boca a informação da água privatizada, o movimento cresceu por toda parte de Cochabamba. Mais famílias aderiram. Decidiu-se então que ninguém pagaria pela conta de água.

Passo 4 – Com as faturas que não paravam de chegar, o movimento fez uma grande fogueira na praça central.

Passo 5 – A situação seguiu assim por cinco meses. Antes que a polícia pudesse entrar na casa dos moradores, esses construíram barricadas com móveis, brinquedos e paus nas portas e portões. Protegidos, não saíram de casa por oito dias. No nono dia, a água em Cochabamba deixou de ser privatizada.

Água: o mundo todo está desprivatizando

[TEXTO ORIGINAL]

Cochabamba (Bolívia), 2000: "Guerra da Água" expulsa multinacional e

Enquanto iniciativas para privatizar sistemas de saneamento avançam no Brasil, um estudo indica que esforços para fazer exatamente o inverso – devolver a gestão do tratamento e fornecimento de água às mãos públicas – continua a ser uma tendência global crescente.

De acordo com um mapeamento feito por onze organizações majoritariamente europeias, da virada do milênio para cá foram registrados 267 casos de “remunicipalização”, ou reestatização, de sistemas de água e esgoto. No ano 2000, de acordo com o estudo, só se conheciam três casos.

Satoko Kishimoto, uma das autoras da pesquisa publicada nesta sexta-feira, afirma que a reversão vem sendo impulsionada por um leque de problemas reincidentes, entre eles serviços inflacionados, ineficientes e com investimentos insuficientes. Ela é coordenadora para políticas públicas alternativas no Instituto Transnacional (TNI), centro de pesquisas com sede na Holanda.

“Em geral, observamos que as cidades estão voltando atrás porque constatam que as privatizações ou parcerias público-privadas (PPPs) acarretam tarifas muito altas, não cumprem promessas feitas inicialmente e operam com falta de transparência, entre uma série de problemas que vimos caso a caso”, explica Satoko à BBC Brasil.

O estudo detalha experiências de cidades que recorreram a privatizações de seus sistemas de água e saneamento nas últimas décadas, mas decidiram voltar atrás – uma longa lista que inclui lugares como Berlim, Paris, Budapeste, Bamako (Mali), Buenos Aires, Maputo (Moçambique) e La Paz.

Privatizações a caminho

A tendência, vista com força sobretudo na Europa, vai no caminho contrário ao movimento que vem sendo feito no Brasil para promover a concessão de sistemas de esgoto para a iniciativa privada.

O BNDES vem incentivando a atuação do setor privado na área de saneamento, e, no fim do ano passado, lançou um edital visando a privatização de empresas estatais, a concessão de serviços ou a criação de parcerias público-privadas.

À época, o banco anunciou que 18 Estados haviam decidido aderir ao programa de concessão de companhias de água e esgoto – do Acre a Santa Catarina.

O Rio de Janeiro foi o primeiro se posicionar pela privatização. A venda da Companhia Estadual de Água e Esgoto (Cedae) é uma das condições impostas pelo governo federal para o pacote de socorro à crise financeira do Estado.

A privatização da Cedae foi aprovada em fevereiro deste ano pela Alerj, gerando polêmica e protestos no Estado. De acordo com a lei aprovada, o Rio tem um ano para definir como será feita a privatização. Semana passada, o governador Luiz Fernando Pezão assinou um acordo com o BNDES para realizar estudos de modelagem.

Da água à coleta de lixo, 835 casos de reestatização

Satoko e sua equipe começaram a mapear as ocorrências em 2007, o que levou à criação de um “mapa das remunicipalizações” em parceria com o Observatório Corporativo Europeu.

O site monitora casos de remunicipalização – que podem ocorrer de maneiras variadas, desde privatizações desfeitas com o poder público comprando o controle que detinha “de volta”, a interrupção do contrato de concessão ou o resgate da gestão pública após o fim de um período de concessão.

A análise das informações coletadas ao longo dos anos deu margem ao estudo. De acordo com a primeira edição, entre 2000 e 2015 foram identificados 235 casos de remunicipalização de sistemas de água, abrangendo 37 países e afetando mais de 100 milhões de pessoas.

Nos últimos dois anos, foram listados 32 casos a mais na área hídrica, mas o estudo foi expandido para observar a tendência de reestatização em outras áreas – fornecimento de energia elétrica, coleta de lixo, transporte, educação, saúde e serviços sociais, somando um total de sete áreas diferentes.

Em todas esses setores, foram identificados 835 casos de remunicipalização entre o ano de 2000 e janeiro de 2017 – em cidades grandes e capitais, em áreas rurais ou grandes centros urbanos. A grande maioria dos casos ocorreu de 2009 para cá, 693 ao todo – indicando um incremento na tendência.

O resgate ou a criação de novos sistemas geridos por municípios na área de energia liderou a lista, com 311 casos – 90% deles na Alemanha.

A retomada da gestão pública da água ficou em segundo lugar. Dos 267 casos, 106 – a grande maioria – foram observados na França, país que foi pioneiro nas privatizações no setor e é sede das multinacionais Suez e Veolia, líderes globais na área.

Fácil fazer, difícil voltar atrás

De acordo com o estudo, cerca de 90% dos sistemas de água mundiais ainda são de gestão pública. As privatizações no setor começaram a ser realizadas nos anos 1990 e seguem como uma forte tendência, em muitos casos impulsionadas por cenários de austeridade e crises fiscais.

Satoko diz ser uma “missão impossível” chegar a números absolutos para comparar as remunicipalizações, de um lado, e as privatizações, de outro. Estas podem ocorrer em moldes muito diferentes, seja por meio de concessões de serviços públicos por determinados períodos, privatizações parciais ou venda definitiva dos ativos do Estado.

Entretanto, ela frisa a importância de se conhecer os riscos que uma privatização do fornecimento de água pode trazer e as dificuldades de se reverter o processo.

“Autoridades que tomam essa decisão precisam saber que um número significativo de cidades e estados tiveram razões fortes para retornar ao sistema público”, aponta Satoko.

“Se você for por esse caminho, precisa de uma análise técnica e financeira muito cuidadosa e de um debate profundo antes de tomar a decisão. Porque o caminho de volta é muito mais difícil e oneroso”, alerta, ressaltando que, nos muitos casos que o modelo fracassou, é a população que paga o preço.

Como exemplo ela cita Apple Valley, cidade de 70 mil habitantes na Califórnia. Desde 2014, a prefeitura vem tentando se reapropriar do sistema de fornecimento e tratamento de água por causa do aumento de preços praticado pela concessionária (Apple Valley Ranchos, a AVR), que aumentou as tarifas em 65% entre 2002 e 2015.

Litígios dispendiosos

A maioria da população declarou apoio à remunicipalização, mas a companhia de água rejeitou a oferta de compra pela prefeitura. Em 2015, a cidade de Apple Valley entrou com uma ação de desapropriação, e o processo agora levar alguns anos para ser concluído.

Satoko afirma que há inúmeros casos de litígios similares, extremamente dispendiosos aos cofres públicos e que geralmente refletem um desequilíbrio de recursos entre as esferas públicas e privadas.

“Quando as autoridades locais entram em conflito com uma companhia, vemos batalhas judiciais sem fim. Em geral, as empresas podem mobilizar muito mais recursos, enquanto o poder público tem recursos limitados, e muitas vezes depende de dinheiro proveniente de impostos para enfrentar o processo.”

Outro exemplo que destaca é o de Berlim, onde o governo privatizou 49,99% do sistema hídrico em 1999. A medida foi extremamente impopular e, após anos de mobilização de moradores – e um referendo em 2011 -, ela foi revertida por completo em 2013. Foi uma vitória popular, diz Satoko, mas por outro lado o Estado precisou pagar 1,3 bilhão de euros para reaver o que antes já lhe pertencia.

“É um caso muito interessante, porque a iniciativa popular conseguiu motivar a desprivatização”, diz Satoko. “Mas isso gerou uma grande dívida para o Estado, que vai ser paga pela população ao longo de 30 anos.”

Realidade brasileira

Já tem uma década que a Lei do Saneamento Básico entrou em vigor no Brasil, mas metade do país continua sem acesso a sistemas de esgoto.

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 50,3% dos brasileiros têm acesso a coleta de esgoto. Para a outra metade do país – 100 milhões de pessoas – o jeito de lidar com dejetos é recorrer a fossas sanitárias ou jogar o esgoto diretamente em rios. Já o abastecimento de água alcança hoje 83% dos brasileiros.

O economista Vitor Wilher afirma que não se pode ignorar esse cenário. Especialista do Instituto Millenium, ele considera que, no Brasil, a privatização seria uma solução do ponto de vista técnico e pragmático.

Ao deter controle de outras áreas que poderiam ser geridas pela iniciativa privada – como saneamento básico, correios, indústria de petróleo – o Estado brasileiro não consegue oferecer serviços básicos de qualidade, como segurança, educação e saúde, afirma.

“Na situação a que chegamos, porém, é meio irrelevante discutir se o Estado brasileiro deveria ou não cuidar dessas áreas. Porque o fato é que o Estado não tem mais recursos para isso”, diz o economista.

“Os recursos estão de tal sorte escassos que ou o Estado privatiza, ou essas áreas ficam sem investimento. Hoje mais de metade da população não tem saneamento básico. Um Estado que gera um deficit primário da ordem de quase R$ 200 bilhões ao ano não tem qualquer condição de fazer os investimentos públicos necessários no setor.”

Moeda de troca para austeridade

O caso do Rio, e da Cedae, é semelhante ao de outros países em que a privatização de serviços públicos é exigido por instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial como contrapartida para socorro financeiro.

Satoko lembra o caso da Grécia, onde a privatização das companhias de água que abastecem as duas maiores cidades do país, Atenas e Thessaloniki, era uma das exigências do programa de resgate ao país.

“É um approach absolutamente injusto, porque a companhia de águas é vendida meramente para pagar uma dívida. Mas, com isso, o dinheiro entra no orçamento público e imediatamente desaparece. Depois disso, a empresa já saiu das mãos públicas – ou indefinidamente, ou por períodos de concessão muito longos, que costumam ser de entre 20 a 30 anos”, pondera.

No papel, a Cedae é uma empresa de economia mista, mas o governo estadual do Rio detém 99,9% das ações. A companhia atende cerca de 12 milhões de pessoas em 64 municípios.

“No caso específico da Cedae, a entrega da gestão a iniciativa privada é ainda mais justificada”, considera Wilher, do Instituto Millenium.

“Além de a situação fiscal do Rio ser crítica, a Cedae não tem serviços de tratamento de água e esgoto satisfatórios há décadas”, diz ele, citando como contraponto o caso de Niterói, cidade vizinha ao Rio, em que a desvinculação da companhia pública e a privatização da rede de água levou a bons resultados. “É um dos cases de sucesso nos últimos anos no Brasil.”

Apesar das muitas deficiências que costumam ser apontados na qualidade e na abrangência do serviço prestado, a Cedae tem ganhos expressivos: só em 2016 o lucro foi de R$ 379 milhões, contra R$ 249 milhões em 2015 – um incremento de 52%.

Satoko afirma que o argumento da ineficiência de sistemas públicos de esgoto não podem ser uma justificativa para a privatização.

“Seus defensores apresentam a privatização como a única solução, mas há muitos bons exemplos no mundo de uma gestão pública eficiente. Afinal, 90% do fornecimento de água no mundo é público”, lembra. “A solução não é privatizar, e sim democratizar os serviços públicos.”

O economista Vitor Wilher ressalta, entretanto, que privatizar não significa uma saída de cena do estado. Uma parte fundamental do processo é uma estrutura de regulação sólida, estabelecendo obrigações, compromissos, prazos, políticas tarifária.

“Não se trata de entregar para a iniciativa privada. Os contratos têm que estar muito bem amarrados, senão a empresa poderia praticar os preços que quisesse e descumprir os serviços que lhe foram designados. Isso é um ponto importantíssimo. Não basta só privatizar, é preciso regular.”

Lógica do lucro ‘incompatível’ com serviços?

O estudo da remunicipalização de serviços aponta para incompatibilidades entre o papel social de uma companhia de água e saneamento com as necessidades de um grupo privado. Os serviços providos são direitos humanos fundamentais, atrelados à saúde pública e que, pelas especificidades do setor, precisam operar como monopólio.

Satoko considera que grupos privados não têm incentivo para fazer investimentos básicos que não teriam uma contrapartida do ponto de vista empresarial. No caso do Rio, por exemplo, investimentos necessários para aumentar o saneamento em áreas carentes não dariam retorno, considera.

“Com a concessão para grupos privados, a lógica de operação da companhia muda completamente. Os ativos não pertencem mais ao público. Ela passa a ter que gerar lucros e dividendos que sejam distribuídos para acionistas”, diz Satoko.

“O risco é enorme. Sistemas de água não pertencem ao governo, e sim ao povo. Se esse direito se perde, torna-se mais difícil implementar políticas públicas.”

A discussão necessária, considera Satoko, é como tornar uma companhia de saneamento mais eficiente e lucrativa para a sociedade. Quando a dívida pública se estabelece como prioridade, não há mais espaço para esse debate.

O São Francisco em mudança de curso

[TEXTO ORIGINAL]

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Os indígenas costumavam chamar o Rio São Francisco de “Opará”, que significa “rio-mar”. Após a chegada dos portugueses ao Brasil, no entanto, ele ganhou o nome do santo italiano. Com o tempo, o curso de água, que é um dos três maiores do país, popularizou-se com a benção de seus ribeirinhos no sertão sob a alcunha de “Velho Chico”. O rio nasce em Minas Gerais, na Serra da Canastra, na cidade de São Roque de Minas. De lá, percorre longo caminho até desembocar na foz do Oceano Atlântico, na divisa entre Alagoas e Sergipe. Em seu curso pelo Nordeste brasileiro, o rio cruza toda a Bahia e o norte de Pernambuco. O caminho de pouco mais de 2.800 quilômetros é margeado por diversas comunidades sertanejas, que há seis anos convivem com uma seca histórica, a maior dos últimos cem anos. Seus diversos afluentes não são tão perenes e sofrem ainda mais com a falta de chuvas.

As secas, que abatiam a região já no século 19 e impediam que os pequenos ribeirões e afluentes do São Francisco fossem perenes, motivaram o governo imperial de Dom Pedro II a pensar na transposição das águas do rio para áreas do sertão nordestino e, inclusive, integrá-las ao Rio Tocantins, que cruza os estados de Goiás, Tocantins, Maranhão e Pará. Em 1847, Marcos Antônio de Macedo, o intendente da comarca do Crato, no Ceará, elaborou o primeiro projeto para transpor as águas do rio para o castigado sertão cearense. Saindo de Cabrobó, no interior pernambucano, as águas chegariam ao Rio Jaguaribe, já no estado vizinho. A ideia percorreu a história brasileira, estacionando em problemas de infraestrutura e falta de vontade política para uma obra que, desde o princípio, prometia ser grandiosa. Presidentes como Epitácio Pessoa, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso negaram-se a topar o desafio. Foi somente em 2003, na primeira gestão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que a obra ganhou corpo, sob a tutela do então ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes. “A ideia da obra [é do tempo do Império] sim e é até uma obviedade, porque você tem, no Nordeste Setentrional, essa grande esquina do Brasil, você tem dois rios perenes, o São Francisco e outro é o Parnaíba – de uma vazão muito medíocre”, explica Ciro Gomes, em entrevista ao Brasil de Fato.

O ex-governador do Ceará (1991-1994) conta que já carregava a ideia da transposição desde o início da sua vida pública. “Eu era deputado estadual, fui prefeito, fui governador, e eu sempre trago essa agenda, meio que como o sentido da minha militância”. O projeto, segundo Ciro Gomes, foi feito em apenas um dia. “A concepção toda veio muito rápido”, conta. “A gente percebeu que não eram necessárias ideias malucas de transpor 300 m³, 500 m³. Nós percebemos que, com sazonalidade e gestão, o máximo de vazão deveria ser de 76 m³ por segundo. Aí o projeto ficou muito viável. Sob o ponto de vista do custo também”. No entanto, foi a obstinação do ex-presidente que tornou o projeto realmente viável, revela Gomes. “Quando o Lula me chamou para ser ministro, eu não estava querendo, ele disse: ‘Olha, eu quero que você venha, porque nós vamos fazer a transposição do São Francisco. Se você topar, eu faço esse projeto agora’”, relembra. Para o povo nordestino, principalmente o sertanejo, Lula é o “pai da obra”. Segundo os moradores, a origem do ex-presidente – natural de Garanhuns, no interior de Pernambuco – foi o estímulo para que ele se empenhasse pessoalmente no projeto da transposição. Anos depois, em março de 2017, Lula foi à cidade de Monteiro, no interior paraibano – destino final dos 270 quilômetros do Eixo Leste do projeto de transposição – acompanhado da ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), para a “Inauguração Popular da Transposição do São Francisco”. O evento foi um contraponto à visita do presidente golpista Michel Temer (PMDB), que, nove dias antes, esteve na mesma Monteiro, em função da obra.

No evento popular, Lula lembrou que, sua infância, no sertão de Pernambuco, foi decisiva para que a iniciativa fosse levada a cabo. “Eu não pensei nessa obra porque eu sou letrado. Eu pensei porque, quando eu tinha sete anos de idade, eu já carregava lata de água na cabeça. Eu sei o que o povo sofre sem água”, discursou na ocasião o ex-presidente a 50 mil pessoas, que acompanharam o lançamento na pacata cidade paraibana. Políticos e moradores presentes no grandioso ato decretavam Lula como o idealizador, o “pai” do projeto. O senador Lindbergh Farias (PT-RJ), em entrevista ao Brasil de Fato, apontou que “Lula levou muita água na cabeça, sabe o que é a seca. O povo sabe que foi Lula quem colocou essa obra no papel. Chega a ser ridícula essa posição do Temer”.

A “paternidade” da transposição vinha sendo discutida dias antes, a partir de uma postagem nas redes sociais feita pelo ministro-chefe da Secretaria Geral da Presidência de Temer, Moreira Franco, afirmando que a ex-presidenta “Dilma não conseguiu entregar as obras” em seis anos, enquanto o governo Temer entregou em “seis meses”. Para a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR), o evento daquele domingo, 18 de março deste ano, mostrou para o país, “que quem é o verdadeiro pai da obra é o Lula. Aliás, as pessoas vieram aqui, chorando, emocionadas, para dizer isso”, defendeu. “Muita gente veio falar comigo, dizendo: ‘Eles tentam enganar a gente, mas a gente sabe que quem fez essa obra foi o Lula’”, destacou na ocasião.

O cearense Junior Coutinho, 43 anos, que trabalha em uma ONG no estado vizinho, veio até a Paraíba só para acompanhar o evento com Dilma e Lula. “A transposição das águas do Velho Chico traz esperança e alento para todos nós, nordestinos. Se Deus quiser, cada vez mais, o Brasil vai reconhecer o trabalho desse grande nordestino [Lula] para o Nordeste e para o Brasil”, destacou. Pedro Limeira, paraibano de 46 anos, servidor público, afirmou durante o lançamento popular que “se existe um pai para essa obra, é Lula. A Dilma deu continuidade e o Temer apenas inaugurou”, avaliou. “A figura do Lula é uma figura emblemática, e não é de hoje. O Temer é que é o estranho no ninho”, completou o servidor.

FOCOS DE RESISTÊNCIA

Nem tudo são flores diante da transposição. Devido a suas consequências, a obra enfrentou resistência desde governadores que não se sentiram contemplados até de comitês de bacias hidrográficas e de movimentos populares, preocupados com os impactos da obra. Um dos principais opositores da iniciativa foi o bispo Luiz Flávio Cappio, do município de Barra, na Bahia, que fez até greve de fome contra o projeto. O Supremo Tribunal Federal (STF) também emitiu decisões desfavoráveis à obra e, de novembro de 2005 até dezembro de 2006, os trabalhos foram interrompidos algumas vezes. As ações questionavam o licenciamento ambiental do projeto, que, à época, ainda aguardava parecer do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama). Um dos maiores focos de resistência contra o projeto se concentrou no estado baiano. A promotora de Justiça Luciana Khoury, do Ministério Público da Bahia, é uma das figuras que questionaram as violações causadas na Bacia do São Francisco e que conseguiu paralisar a obra junto ao STF. “Nós conseguimos liminares nos dois processos e conseguimos suspender a obra durante dois anos”, lembra. Para a promotora, a transposição é um “empreendimento potencialmente causador de danos”. “[A obra] não podia deixar de ser verificada, acompanhada. Na época, a gente teve uma atuação muito integrada com os ministérios públicos de outros estados e também com o Ministério Público Federal. Com isso, nós fizemos um trabalho muito parceiro de conhecimento da proposta do projeto e identificação de irregularidades das normas; [avaliamos] se ele cumpria de fato com as etapas previstas pelas normas, do ponto de vista ambiental, e das normas de recursos hídricos”, explica a promotora. O grupo que a acompanhava teve acesso aos Estudos de Impacto Ambiental (EIAs), notas técnicas de setores do Ministério Público Federal (MPF) sobre povos e comunidades tradicionais, além de pareceres de universidades, que mostravam possíveis lacunas do projeto no meio físico e no meio socioeconômico.“O projeto previa uma quantidade de pessoas impactadas, de comunidades impactadas, muito menor do que de fato aconteceu. Além de não ter feito estudos, por exemplo, dos impactos da fauna do rio, postergando estudos para a fase de implantação do projeto”, acrescenta Khoury.

Um dos grupos que atuou com a promotora contra os impactos da obra no rio foi o Comitê da Bacia do Rio São Francisco, que participa do Conselho Gestor da Transposição e é presidido por Anivaldo de Miranda. Segundo ele, a entidade perdeu “uma batalha”, pois “as discussões foram atropeladas nos comitês de recursos hídricos; aprovada pelo conselho nacional, de acordo com a confecção que o governo impôs”. Ainda de acordo com Miranda, “a obra deveria ser mais simples”. “O Comitê não fez sugestão, mas seria possível utilizar adutoras, principalmente para regiões críticas como Campina Grande [na Paraíba]. O comitê era favorável a soluções mais rápidas. Já existe um acúmulo de conhecimento, como as cisternas, as barragens subterrâneas”, completa o presidente do Comitê.

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Arte: Karina Ramos

Outras organizações, como o Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), também criticaram o projeto. Em uma nota divulgada após a inauguração do Eixo Leste da obra, o movimento afirma “que não é o tipo de tecnologia para geração de energia ou captação de água que determina se elas são alternativas ou sustentáveis. O que determina, de fato, é ‘pra quê’ e ‘pra quem’ estas obras são construídas. Quem serão os beneficiados: o povo ou meramente as empresas do capital privado?”. Segundo o MAB, “no interior de sua concepção, como toda grande obra do capital, predomina o abastecimento ao agronegócio e às grandes indústrias localizadas nas regiões dos ‘portos’”. A organização lembra ainda que o empreendimento “desalojou milhares de famílias e violou os direitos humanos de centenas de comunidades, incluindo indígenas e quilombolas”. Outras preocupações que também permeiam as discussões dos críticos à obra são sobre a qualidade da água do Rio São Francisco, a manutenção da mata ciliar e uma série de programas que impediriam o lançamento de esgoto in natura, ou seja, sem tratamento, em diversos pontos do “Velho Chico”.

Arte: Karina Ramos

Segundo o Ministério da Integração, cerca de 38 Programas Básicos Ambientais foram empreendidos para minimizar os impactos da implantação das obras e potencializar os seus benefícios. Um deles, diz hoje a pasta, é o de Conservação de Fauna e Flora, “que fez parte do processo de licenciamento do empreendimento”. O programa seria responsável por monitorar e resgatar a biodiversidade vegetal e animal da região da Caatinga, mitigando os impactos negativos da obra.
Sobre a polêmica, Ciro Gomes avalia que “há uma confusão brutal” nas críticas feitas ao projeto de transposição do São Francisco. “Você não pode atribuir à transposição qualquer tipo de responsabilidade pelo problema do rio. O rio está assoreado, o rio está poluído, o rio está com as matas ciliares todas destruídas, sem que a transposição existisse”, defende. O ex-ministro afirma que a “transposição é o projeto de maior compensação ambiental da história do Brasil”. Movimentos populares e o Comitê de Bacia do rio São Francisco, contudo, apontam que os recursos para as obras de compensação estão paralisados e que alguns estados cortados pelo “Velho Chico”, como a Bahia, não dispõem de viabilidade financeira para tocar as obras. O Ministério da Integração explica, por sua vez, que o Programa de Recuperação de Áreas Degradadas “gerou modificações na área do entorno do canal e esses locais já estão contando com ações de recuperação”, que incluem plantações de mudas nativas da região”. A pasta promete ainda que “os demais trechos subsequentes do projeto serão recuperados de acordo com a finalização das obras”.

Como pulsa hoje nosso desejo de rua?

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No ano passado [2014] o movimento pela defesa do Parque Augusta conseguiu que o prefeito Haddad sancionasse o projeto de lei que previa a criação do parque, mas dias depois se deparou com o fechamento ilegal do terreno por iniciativa das incorporadoras Setin e Cyrela, que ali planejam a construção de três torres imensas. Diante do impasse, o movimento decidiu “abrir uma trilha” no interior da área cercada, como uns bandeirantes às avessas: em vez de matarem índios e se apossarem da terra, liberaram um pedaço de Mata Atlântica autêntica no coração da capital paulista. E instauraram uma “zona de autonomia ambiental temporária”, com ações de sensibilização empreendidas por vários coletivos e moradores, sem coloração partidária nem fins políticos. A intenção não é apropriar-se do terreno, mas abri-lo a um “uso comum”, como diria Agamben.

Uma breve passagem pelo local permite a qualquer um cruzar as 700 árvores centenárias, vislumbrando, como numa alucinação transhistórica, um dos poucos resquícios de “passado” pré-colombiano fincado na metrópole e soterrado por ela. Ao perambular pela área onde antes erguia-se o Colégio des Oiseaux, hoje se veem mais de 200 árvores de várias espécies plantadas, uma cisterna para coleta de chuva, uma rádio local na base da tecnologia móvel, a mais simples e ágil, um seminário de micropolítica acontecendo debaixo de um sol inclemente, uma aula de ioga a céu aberto, jovens com seus laptops ligados cuidando em manter viva a rede de contatos, informações, articulações, um filme sendo projetado, assembleias e aulas abertas – em suma, uma “vigília criativa”. Eis uma terra em que ninguém se pensa como dono de nada, ninguém vende nem compra nada, ninguém manda em nada, onde pessoas de diferentes idades, origens, formações, sensibilidades, coabitam por um tempo em contiguidade pluralista, num jogo aberto entre iniciativas autônomas, afetividades e sexualidades singulares, e assim deixam entrever o que poderia uma vida coletiva hoje, polifônica, regida por uma lógica outra que não a da voracidade autocentrada, da normopatia blindada ou da monocultura entrópica. Um “kibutz do desejo”, diria Cortázar. Mas na sua versão ecológica, biopolítica. Pois é isso também que ali se ensaia – não se trata de “apropriar-se”, “tomar o poder”, ou apenas gritar palavras de ordem uníssonas contra o capital ou a gentrificação, mas também zelar pelas árvores, pela circulação livre, pela sustentação coletiva, e experimentar formas-de-vida inabituais, múltiplas, que não têm nome, ainda que os ativistas usem noções aproximativas como horizontalidade, autogestão, organização em rede.

Não é uma utopia ingênua de idílico retorno à Natureza, nem uma comuna hippie deslocada no tempo e no espaço, mas uma aposta biopolítica que, embora enunciada numa escala diminuta, pode destampar a imaginação política em escalas outras. Afinal, a questão central, mesmo e sobretudo em tempos de crise, continua sendo: que formas de vida nós desejamos hoje? Como o escreveu um tal de “comitê invisível” longínquo, a força dos islamistas radicais está no sistema de prescrições éticas que eles oferecem, como se eles tivessem compreendido que é no terreno da ética, e não da política, que o combate se trava. Nas antípodas do Estado Islâmico, o que se esboçou no Parque Augusta está mais próximo do bien vivir, como dizem alguns povos indígenas vizinhos nossos. Inspirado nessa tradição dos povos autóctones, Eduardo Viveiros de Castro lançou há pouco uma bela ideia, no livro terrivelmente perturbador que escreveu com Déborah Danowski em torno da destruição não só do mundo mas também dos múltiplos mundos, a saber: a “suficiência intensiva”.[1] Como descolar-se da lógica do acúmulo, aceleração, progresso, destruição, para reorientar-se em direção a uma vida “intensivamente” suficiente, e não quantitativamente ideal? Pois esta, sabemos, tende ao infinito, embora esbarre nos recursos finitos do planeta que ela se encarrega de exaurir. É preciso passar por um “ralentamento cosmopolítico” para que tal recondução seja pensável. Claro que não temos para isso ainda um povo, como dizia um pensador, longe disso. Mas algo nos diz – porém também isso colhemos de reflexões alheias – que não existe primeiro um “sujeito revolucionário” e depois uma “insurreição”, mas são as sublevações várias que vão constituindo um “povo”, por assim dizer. Ou então é nesse meio que se inventam “modos de povoamento”. Usamos palavras um pouco velhas e em desuso, ou estranhas e grandiosas demais, para dizer coisas muito simples e atuais.

Desde as revoltas de junho de 2013, a pergunta que continua no ar é a seguinte: será que aquilo que foi empreendido e experimentado no corpo a corpo por multidões pelo país afora, que pôs os políticos de joelhos e por um átimo fez tremer as instituições, tem chance de prolongar-se no presente sem ser cooptado por golpismos vários, sobretudo num momento em que em vários planos, econômico, parlamentar, moral, para ficar em itens midiáticos recentes, assiste-se a uma reação conservadora brutal, que literalmente joga no lixo a voz das ruas, em nome da qual, aliás, alguns dos mesmos políticos conservadores conseguiram eleger-se? Não pretendemos oferecer qualquer resposta a tal pergunta – ela só pode vir das ruas. Mas não deveríamos esquivar-nos de uma constatação a cada dia mais tocante, sobretudo em nossa cidade, e isso vai do Parque Augusta aos 300 blocos de carnaval de rua em São Paulo, das dezenas de manifestações do MPL [Movimento Passe Livre] por todos os cantos da cidade, centro e periferia, até a miríade de iniciativas individuais e coletivas que não atingem o limiar de visibilidade midiática, pois são como vaga-lumes frente aos holofotes espetaculosos. A constatação simples é apenas esta: há um desejo de rua crescente e incontido em nossa cidade, e para além dela! Sim, as “pessoas” – e sei o quanto essa palavra pode irritar nossos cientistas sociais – querem ocupar espaços, ruas, praças, ciclovias, minhocões, sair de seus buracos privados ou telinhas virtuais e ensejar situações de encontro ou fricção dos mais diversos tipos, seja na cólera ou na alegria, em todo caso em situações menos codificadas, mais indeterminadas, abertas àquilo que hoje pede para ser inventado a fim de tornar respirável o dia a dia na cidade e no planeta, numa nova ecologia ambiental mas também subjetiva, como dizia Guattari.

Sabemos que a força dessas experimentações minúsculas diante do poder das construtoras, governantes e juízes parece sempre irrisória, para não dizer risível. E no entanto, é também nesses bolsões efêmeros que se experimentam gestos mínimos, lógicas incertas, estratégias e afetos capazes às vezes de transbordar ou disparar uma mobilização multitudinária e infletir o destino de um bosque ou de um mundo – lembremos que as revoltas em Istambul começaram pela defesa do parque Gezi. Tampouco aqui o critério quantitativo deveria nos intimidar. Quantas vezes não é pequeno o locus do desvio e da bifurcação decisiva? Como diz um personagem de Dostoiévski – e aqui o aplicamos à nossa imaginação política – até o incêndio de Moscou começou por uma vela de um kopek.

São Francisco: O rio transportado à beira da morte

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Para a transposição das águas do São Francisco funcionar é preciso algo óbvio: o rio ter água. Por mais elementar que seja essa questão, a maioria das reportagens publicadas na imprensa empresarial ignora a situação de clemência do rio nas reportagens sobre o desvio das águas.

Festeja-se a inauguração do primeiro eixo da obra, que transporta água para a Paraíba, mas a saúde do rio está bem precária e vem piorando com muita velocidade. E não só é a falta de chuvas regulares nos últimos seis anos responsável por esse quadro de extrema fragilidade. Afinal de contas, o São Francisco, que chegou a concentrar 2/3 das águas doces do Nordeste, não é rio que dependa da água que cai do céu para ser caudaloso. O único rio perene do Semiárido está se tornando temporário, dependente dos tempos chuvosos.

Levante a mão quem já leu algum texto da mídia comercial que relaciona a devastação do Cerrado com a situação de penúria do São Francisco? Os elos existem mas não são colocados sobre a mesa para iniciar um debate honesto a respeito da revitalização do rio.

A entrevista é de Verônica Pragana da Asacom e publicada por Asa Brasil, 30-03-2017.

E o que pode acontecer com as populações rurais que vivem nas áreas que receberão as águas transportadas do rio? Poderiam viver com mais abundância, é certo. Mas os fatos reais apontam para o aumento de situações de conflito e pressão que as famílias passam a sofrer das empresas do agronegócio de olho nas terras irrigáveis para seus monocultivos.

E qual será o preço da água? Quem vai fazer a gestão desta água que sai da esfera federal, passa para a gestão estadual até chegar nos consumidores finais? A gestão será pública ou privada? Fala-se hoje que, em vez da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), quem vai cuidar da oferta de água para os estados receptores é uma empresa privada. É uma forma de privatização da água.

Todas estas questões foram refletidas por Roberto Malvezzi, conhecido como Gogó, uma voz atuante na defesa da vida do rio São Francisco e na defesa da vida das populações ribeirinhas e do campo. Filósofo, teólogo e assessor da Comissão Pastoral da Terra, da ASA e dos movimentos sociais do campo, Gogó é um especialista em Semiárido e no Rio São Francisco.

Um rio quase seco

O volume de água em Sobradinho, estamos em metade de março, está com 15%. Só um milagre para essa barragem pegar água. E a vazão está em 700m³/s, quando no debate sobre a transposição, eles garantiram 1.800m³/s que seria um volume seguro. No prazo de 2007 pra cá, em dez anos, o rio foi reduzido a um terço. Hoje, vi que a ANA deu licença pra lá em Xingó reduzir de vez em quando para 675m³/s, nem 700m³ mais, o que faz com que o rio perca força. Na foz, as águas estão salinizadas. Esse impacto nunca é levado em consideração.

O rio está em processo de decadência e extinção mesmo, como dizem muitos cientistas. Quando não olha para este conjunto, você ignora o impacto que isto [a transposição] pode ter sobre o rio.

O berço das águas é um bioma devastado

Não podemos dizer que é a transposição que está causando isso no rio, que vem num processo de depredação há mais de 100 anos, mas essa obra ajuda a impactar uma situação já grave. E a revitalização foi um discurso vazio. Se você perguntar ao governo, eles vão dizer que num sei quantos bilhões que foram investidos, mas fora o saneamento, em termos de recomposição de matas ciliares no território da bacia, sobretudo, o Cerrado, o Cerrado da Bahia que abastece [o rio] realmente com seus aquíferos, não foi feito realmente nada. Se jogaram o dinheiro aí é de se perguntar onde esse dinheiro foi parar.

Os nossos cientistas dizem que o que sustentam o São Francisco são os aquíferos do Cerrado. Uma vez desmatando o Cerrado, você fragiliza os aquíferos e todos os rios dependentes do Cerrado. O São Francisco é o caso mais exemplar disto. Já tivemos a extinção de milhares de rios pequenos, afluentes, e com isso a calha vai enfraquecendo. Toda a devastação é provocada pelo agronegócio, carvoarias e minas que usaram a madeira pras siderúrgicas. É ali que está a decadência do São Francisco. Quem paga o impacto disto é a população do São Francisco.

Pobreza e agronegócio

Você pode dizer que Juazeiro e Petrolina são cidades ricas, são. Mas são ilhas, todo o resto ao largo do São Francisco entrou em decadência, no pescado, na agricultura de vazante, as populações à beira do rio, as cidades são decadentes, Barra, Lapa, Penedo, Pirapora, Propriá. O único polo que prosperou foi Juazeiro e Petrolina porque leva uma grande porcentagem da água do rio para os projetos de irrigação. E mesmo assim as nossas comunidades em Juazeiro e Petrolina perderam as suas terras para o agronegócio.

É o que tenho dito para o pessoal do Rio Grande do Norte, Paraíba, [Chapada do] Apodi, que a chegada da água da transposição vai aumentar a pressão do agronegócio e do hidronegócio sobre as terras de qualidade do Apodi, nas várzeas de Sousa, na Paraíba, e no Ceará, porque o agronegócio vai querer se apossar destas terras expulsando as comunidades como foi feito no Vale do São Francisco, então tem uma questão de classe, uma questão justiça, uma questão de exclusão.

Eu compreendo a euforia das pessoas que estão recebendo a água, não significa que esta euforia não vai durar muito não. Na hora que as pessoas perceberem que a água não está chegando nos municípios, nas casas, a frustração pode ser maior ainda.

O pessoal do Vale do Apodi no Rio Grande do Norte está conseguindo ficar ali por resistência. São organizados, são fortes, mas até quando vão aguentar a pressão. Ali eles têm consciência porque já sofreram com isso, né?

A quem vai servir as águas transportadas?

No Ceará, as águas vão entrar pelo Vale do Jaguaribe, Salgado, aquele que vai bater no Castanhão, que vai abastecer Fortaleza. Na Paraíba, vai abastecer Campina Grande, dizem que no futuro, até João Pessoa. No Ceará, vai abastecer Fortaleza, vai fortalecer a indústria, o Porto do Pecém com as águas do São Francisco e fortalecer os projetos de irrigação ao longo dos canais no Ceará.

Esse tipo de questão é secundária. A população que precisa da água, uma vez que cair na Paraíba e cair no Ceará, é a classe dominante vai se interessar. Todo esse processo de distribuição das águas para os municípios que o Lula e a Dilma se interessaram em fazer depois, na verdade, as classes política e empresarial vão se desinteressar porque eles querem essa água para outra finalidade que não é para consumo humano, é para a indústria e o agronegócio. O povo vai ficar sozinho nesta luta. Pra fazer a transposição, todo mundo estava interessado, o agronegócio, os políticos, o povo, uma vez que a água caiu por lá como as finalidades são diferentes.

O pessoal que vai usar a água para irrigação não vai ter interesse levar para frente as obras capilares, as adutoras para distribuição destas águas para os municípios. Eles colocaram uma lista de 390 municípios para receber esta água. Nenhum tem projeto em andamento, nem de elaboração, nem de execução. Isso vai demorar ainda. Estão falando em terminar isso em 2025. Mesmo a adutora do Agreste, em Pernambuco, que já pra ter sido feito há muito tempo, com a tomada de água direto do São Francisco que ficou à espera do canal da transposição, estão dizendo que vai terminar em 2020.

Sem pesca, sem agricultura de vazante, hidrovia e com menos energia

Tem problemas sérios e graves na transposição mas, sobretudo, tem problemas graves que é a própria decadência e, quando se fala na obra, todo mundo vira as costas para o São Francisco e para a população do rio São Francisco, que é, no fundo, quem está pagando as contas deste modelo de desenvolvimento no vale há quase um século. O povo perdeu pesca, perdeu terra, perdeu a agricultura de vazante, perdeu a navegação, aquilo que o São Francisco era pra ser uma hidrovia, há mais de dez anos não tem uma barca comercial rodando no São Francisco porque não tem água.

A Chesf perdeu geração de energia. Os próprios irrigantes, no ano passado, aqui no vale do São Francisco perderam produção porque não tinha água aqui dentro da bacia, fora a questão da vasão ecológica que deveria ser 1.230m³/s, isso era dado do Ibama, e hoje num tem nem 700m³, isso implica que você não tem reprodução de peixe, reprodução de vida, é um rio também morto do ponto de vista de sua fauna e de sua flora.

Água privatizada

E ninguém sabe qual vai ser custo desta obra, a que preço esta água vai chegar. Primeiro, era a Chesf que ia vender esta água do rio São Francisco para os estados receptores. Agora estão dizendo que vai ser uma empresa privada. Então vai cobrar para entregar esta água na Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, mas pelos esquemas, eles querem assim, caiu no lado de lá vai ter uma espécie de hidrômetro, que vai medir, e os estados já vão ter que pagar.

Depois os estados vão vender para os usuários, vai vender pra irrigação, pras empresas de serviço de abastecimento, pras indústrias, cada uma vai comprar do estado, se é que o estado num vai colocar uma empresa privada também. Só depois é que esta água vai chegar no ponto final que são os consumidores domésticos. Com três, quatro taxas de compra e venda, vai saber a quanto vai chegar o preço final, né?

Isso é uma privatização. Uma vez que uma empresa vai comprar água e vai vender e outras vão comprar e vender, criou um mercado de água. Isso é o que o Banco Mundial queria há 20 anos, Quando foi fazer a transposição, FHC [Fernando Henrique Cardoso] queria começar a fazer. O Banco Mundial recomendou que não, que a obra era inviável. Se tem alguém que realmente bancou essa obra, que é o pai e a mãe desta obra, é o Ciro, o Lula e a Dilma. Eles foram quem bancaram esta obra com dinheiro público. Pelo bem, pelo mal, eles são os padrinhos desta obra.

O percurso da água é um percurso fechado. O pessoal tá na maior ilusão de que pode acessar esta água, mas por enquanto muda nada. É água de canal pra barragem que vai abastecer as cidades que já abastecem. De resto não altera nem o quadro do sofrimento desta seca que estamos vivendo. O povo, na verdade, está se virando com as tecnologias simples.

A turma se ilude ao achar que o povo vai se beneficiar desta água quando vai aumentar a pressão sobre as comunidades, as suas terras, os seus territórios, inclusive, sobre o controle da água dos açudes e barragens que não fazem parte da transposição. Porque eu tenho a impressão que a privatização destes grandes açudes é de toda a água depositada nele, não só sobre a água da transposição, mas também sobre que a chuva acumulou ali. Toda a água vai ficar mais cara pro povo do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba.

Agora, o pessoal tá achando que vai ter água sempre. Pode ser que sim, pelo menos, quando tiver o rio São Francisco. Mas, não significa que a população vai ter acesso à água. A luta vai ser muito dura. Tomara que a luta seja suficientemente forte para operacionalizar a distribuição da água [para a população rural], mas eu tenho minhas dúvidas. Nunca fizeram essa distribuição em outras épocas, entendeu? Ainda mais com esta mudança política agora. Se o Lula e a Dilma tivesse algum interesse na distribuição, era um tipo de governo que dava pra pressionar. Mas este que vem por aí…

Águas do rio e o voto em 2018

Tem uma terrível disputa eleitoral em cima desta obra até 2018. Quando se fala do Lula e da Dilma, é uma propaganda direta, sem nenhum senso crítico. E os adversários vão querer ficar achando críticas. O Temer veio e trouxe o Alckmin pra tirar uma lasquinha. Isso tem um poder eleitoral muito grande, que ajuda a obscurecer a leitura crítica.

São Francisco: transposição para que(m)?

190320-SFrancisco

[TEXTO ORIGINAL]

Quando o Brasil ainda era império e Dom Pedro II governava o país, surgiu a proposta de transposição das águas do Rio São Francisco como solução para as recorrentes secas do semiárido nordestino. O tema voltou a frequentar as discussões nacionais no ocaso do Estado Novo getulista, reaparecendo como um primeiro projeto efetivo apenas no governo do general Figueiredo.

Após a redemocratização, a ideia de integrar bacias com as águas do São Francisco passou pelos governos Itamar e FHC, mas somente saiu do papel com o presidente Lula. As obras avançaram com Dilma e, no último dia 10 de março, Michel Temer inaugurou o eixo leste enquanto o povo agradecia a Lula pela obra.

A festa de Temer na inauguração indica que o presidente tem a intenção de se apresentar como o grande pai da obra. Que assim o seja, e que o presidente assuma também os problemas associados ao megaprojeto. Colher os louros e não querer ter trabalho algum é digno dos grandes canalhas. E a lista não é pequena.

O grande argumento favorável ao projeto de integração das bacias, como é tecnicamente chamada a transposição, é que quem tem sede, tem pressa. Entretanto, projeto semelhante tocado pela extinta União Soviética com o desvio dos rios Amu Darya e Syr Darya para o plantio, inicialmente, de arroz, cereais e melões e, depois, de algodão, resultou no assoreamento do Mar de Aral, que teve reduzido seu tamanho em 60% e volume em 80%, e na destruição quase total de seu ecossistema, numa das maiores tragédias ambientais do século XX. A pergunta que sempre deveria ter sido feita é se o projeto do Rio São Francisco não poderia ter consequências semelhantes.

O que nos leva ao primeiro ponto em que deve ser cobrado o compromisso do governo federal. Talvez o único consenso entre os que eram contrários e favoráveis à transposição sempre tenha sido a necessidade da recuperação de toda a mata ciliar do rio. Projeto esse que andou a passos de tartaruga na gestão petista, na qual apenas alguns setores do governo Dilma tentaram apresentar um projeto de desenvolvimento integrado do São Francisco. Qualquer discussão que busque manter a vitalidade do rio e tenha qualquer viés ambiental não é apresentado à sociedade.

O que hoje se apresenta como uma solução para a escassez hídrica histórica do semiárido pode se tornar a pá de cal e desertificação definitiva da região sem um efetivo resgate do rio, vide os baixos níveis que tem apresentado, por exemplo, a barragem de Sobradinho nos últimos anos. A integração de bacias é um projeto de R$ 10 bilhões. Antes do golpe discutia-se por pouco menos de R$ 2 bilhões, em articulação com os estados por onde passa o rio, um projeto para não apenas recuperar toda a mata ciliar, como também garantir emprego e renda a toda a população no seu entorno.

Não obstante a transposição do São Francisco seja apresentada como a grande solução para o problema da seca do nordeste, de acordo com o licenciamento ambiental do empreendimento, apenas 5% do território semiárido brasileiro e 0,3 % da população serão beneficiados; somente 4% da água serão destinados à chamada população difusa, 26% ao uso urbano e industrial e 70% para irrigação da agricultura. O que nos remete à questão central que há décadas é apontada pelos diversos movimentos sociais, cada qual no seu tempo, de que o grande problema do Nordeste nunca foi a seca, mas as cercas.

Todas as áreas adjacentes aos eixos da transposição encontram-se decretadas de interesse público. Se houvesse um interesse real em atender a grande massa de trabalhadores rurais pobres do semiárido, encaminhar-se-ia a efetiva desapropriação destes territórios, destinando-os à agricultura familiar através da reforma agrária. Todavia, todas as sinalizações do governo apontam que o grande beneficiário das águas da transposição serão os velhos coronéis do sertão do Nordeste.

Um outro ponto pouco abordado neste debate é a própria qualidade da água do rio São Francisco. O uso intensivo de agrotóxicos, particularmente nas regiões de fruticultura irrigada do submédio São Francisco, na região onde estão as cidades de Petrolina Juazeiro, leva a um questionamento sobre a própria adequação desta água para consumo humano ou animal, e até mesmo para irrigação.

Importante lembrar que o Dossiê da ABRASCO sobre os impactos do uso de agrotóxicos aponta o Brasil como o maior consumidor destes produtos no mundo. Os agrotóxicos produzem diversos efeitos externos, tanto no meio ambiente quanto na saúde humana.

As estimativas existentes apontam, de acordo com estudo feito na Universidade Essex, liderado por Jules Pretty e outros, o custo anual destas externalidades no Reino Unido, para o ano de 1996, em ₤ 2,34 bilhões. David Pimentel chega a um total de US$ 9,645 bilhões de custos ambientais e sociais do uso de pesticidas nos EUA. No Brasil, apenas Wagner Soares e Marcelo Porto fizeram uma estimativa do custo das intoxicações agudas para o Estado do Paraná com base na Pesquisa de Previsão de Safras de 1998 e 1999 e encontraram um custo de US$ 149 milhões nesse estado. A transposição das águas de um rio contaminado por agrotóxicos pode agravar este tipo de impacto.

De uma forma ou de outra, o projeto da transposição traz muitas esperanças para a população do semiárido nordestino. Sua efetividade, contudo, depende de outros projetos que garantam a sustentabilidade do rio e a qualidade da água. É preciso resgatar a ideia de que as cercas são um problema maior que a seca e que se rompam os domínios baseados na posse do território com água por meio de uma radical reforma agrária.

Os caminhos que vinham sendo tateados no ocaso do governo Dilma, como um Projeto de Desenvolvimento Integrado do São Francisco, precisam ser percorridos com pressa. Se Temer insiste em assumir uma obra para a qual em nada contribuiu, que assuma também as responsabilidades dela decorrentes.

Brasil devasta o Cerrado antes de conhecê-lo

Vegetação em torno da Chapada dos Guimarães. Considerado um dos "hotspots" da biodiversidade do planeta, cerrado ja foi desmatado em 50% de sua área

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Durante quatro décadas o Cerrado, segundo maior bioma da América Latina, perdeu metade de sua vegetação nativa. Envolto pelo discurso de que era o “celeiro do mundo”, seu desmatamento seguiu invisível por grande parte da sociedade. Era legitimado por meio de programas governamentais de ocupação e de incentivo a agropecuária, iniciados ainda no período da ditadura militar, e atualmente com o Plano de Desenvolvimento Agrícola (PDA), mais conhecido como Matopiba.

O Cerrado ocupa uma área de dois milhões de km2, ou 24% do território nacional. Abrange 13 estados e está localizado na região central do país. Faz limites com outros biomas brasileiros como a Mata Atlântica, a Floresta Amazônica, a Caatinga e o Pantanal. Considerado o berço das águas, é no Cerrado que estão localizados três aquíferos que abastecem boa parte do país: Guarani, Urucuia e Bambuí.

Depois da Mata Atlântica, o Cerrado é o bioma brasileiro que mais sofreu alterações com a ocupação humana. As extensas áreas planas e uma região com farto recurso hídrico atraíram o interesse do agronegócio, principalmente para a região do Matopiba, nome que leva as inicias dos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia.

 

Desmatamento

De acordo com a pesquisadora Elaine Silva, do Núcleo de Estudos Socioambientais (IESA) da Universidade Federal de Goiás (UFG), o Cerrado está com 50% de “área convertida”, ou seja, no lugar da vegetação nativa há muitos espaços abertos ocupados por pastagens.

A agropecuária é a atividade que mais alterou o cenário geográfico do bioma. Silva explica que o desmatamento preocupa porque foi muito rápido e hoje o Cerrado se configura, ora em imensos campos, ora em vegetação nativa. Como uma colcha de retalhos ele se apresenta “fragmentado”, explica a pesquisadora.

“Essa perda de quase 50% é problemática porque foi uma coisa muito rápida. O que tem hoje é muita fragmentação, ou seja, são manchas, redutos do Cerrado que às vezes não conseguem se manter, reestabelecer uma biodiversidade” afirma.

Isolete Wichinieski, integrante da Comissão Pastoral da Terra (CPT), fala que na região do Matopiba concentra-se a maior parte do desmatamento, com destaque para o estado do Piauí, e faz uma observação.

“Esses dados estão defasados, você não consegue ter um monitoramento como temos na Amazônia. Nós não temos [monitoramento] de outros biomas brasileiros e o Cerrado precisa disso. Sem a sua vegetação, a água não penetra no solo. Ao tirar essa vegetação, que é rala, e colocar as plantas que são chamadas de “exóticas”, como a soja, o eucalipto, a cana de açúcar, dificulta muito para que a gente tenha a água necessária”, alerta.

Silva conta que o último monitoramento realizado pelo governo federal foi divulgado no final de 2015. Denominado de TerraClass, os dados basearam-s em imagens de satélites do ano de 2013. Ela integrou a equipe de coordenação na produção do relatório, assim como representantes de outras instituições. O relatório apontou que pastagens plantadas e a agricultura ocupam 41% do total do Cerrado, fora outras atividades como a mineração.

O relatório do TerraClass informa que “as taxas de desmatamento vêm apontando valores superiores aos da Amazônia”. Contudo, esse alerta parece não mobilizar a opinião pública.

Invisibilidade

Diferente da Amazônia, o Cerrado não faz parte de um programa nacional de monitoramento contínuo via satélite. É o que afirma Myanna Lahsen, pesquisadora no Instituo de Pesquisas Espaciais (INPE) em artigo Desvalorizando e Superexplorando o Cerrado Brasileiro: Por Nossa Conta e Risco, recentemente publicado na Environment Magazine.

“Em 2010, o governo brasileiro lançou o PPCerrado [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado] modelado no PPCDAm [Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal]. Mas sua aplicação e eficácia, bem como a coordenação entre os diferentes ministérios e agências públicas relevantes, são mais fracos do que os do PPCDAm”, analisa.

Lahsen, juntamente com Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB), e Eloi Dalla-Nora, também do INPE, assinam o estudo e informam que, mesmo com avanços tecnológicos na produção de imagens de satélites, o governo faz pouco uso da tecnologia para monitorar as mudanças que ocorrem no solo, e apontam que “novas políticas são necessárias para promover e integrar a importância deste bioma para a nação. Isto inclui a implementação de sistemas de monitoramento sistemático e melhorias na gestão daqueles que já estão estabelecidos”.

Ainda segundo o estudo, a estimativa anual de desmatamento entre os anos de 1994 e 2002 alcançou o equivalente a mais da metade do tamanho da Bélgica, e com a expansão agrícola no espaço que abrange a região Matopiba esse número vem aumentando. De 2005 a 2014 a área plantada na região do Matopiba aumentou 86%, enquanto a média nacional do mesmo período foi de 29%. O projeto capitaneado por Kátia Abreu, ex-ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) se instalou rapidamente e se tornou um grave problema social e ambiental para região.

Outros fatores que reforçaram a invisibilidade sobre a importância da biodiversidade do Cerrado foram os programas governamentais que incentivavam a ocupação e o incremento da agropecuária no Centro-Oeste ainda no período da ditadura militar, como explica Wichinieski.

“Era uma região pouco explorada. A partir da década de 1970, com a modernização da agricultura e o desenvolvimento pela Embrapa de técnicas para exploração dessa atividade, isso foi mudando e o capital foi percebendo que essa região era importante para o desenvolvimento do agronegócio”, explica.

A tese A dinâmica socioespacial e as mudanças na cobertura e uso da terra no bioma Cerrado, de Silva, explica que na época o interesse do governo era produzir estudos que evidenciassem o potencial agropecuário do Cerrado, a exemplo do Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro), que previa uma ocupação de 3,7 milhões de hectares e incentivava a oferta de crédito e implantação de infraestrutura por parte do Estado. Outro projeto que teve início nos anos 70 foi o Programa de Cooperação Nipo-brasileira para o Desenvolvimento dos Cerrados (Prodecer). Dividido em três fases, o projeto oferecia financiamento, assistência técnica, projetos de irrigação e eletrificação.

Defesa do Cerrado

O Cerrado, segundo estudo da pesquisadora do INPE, “é classificado como um dos 35 hotspots de biodiversidade existentes no planeta”, que significa que o bioma apresenta elevada biodiversidade — mas encontra-se ameaçado ou passa por um grave processo de degradação. A ONG Conservation International (CI) classificou as 35 áreas com grande importância biológica no mundo e que atualmente estão ameaçados.

Em defesa desse bioma, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) lançou a campanha com o tema: “Cerrado, Berço das Águas: Sem Cerrado, Sem Água, Sem Vida”. Cerca de 35 organizações integram a mobilização. Wichinieski coordena a campanha e informa que o bioma contribui para a formação de importantes bacias hidrográficas da América do Sul, como a bacia do Prata Paraguai, e também o Araguaia-Tocantins, São Francisco e Paraná.

“Dele [Cerrado] nascem vários rios pequenos que vão formando essas bacias hidrográficas. A bacia do São Francisco depende 97% das águas que nascem no Cerrado. Ele tem essa função estratégica de acumular água devido ao seu solo e sua vegetação. O solo facilita com que a água penetre profundamente nos lençóis freáticos formando os aquíferos”.

Dados publicados no artigo da pesquisadora Lahsen, informam que o bioma é abrigo de cerca de 850 espécies de aves, 251 espécies de mamíferos e 12 mil espécies de plantas nativas. Há uma probabilidade de que pelo menos 901 estejam ameaçadas de extinção, mas adverte que os números reais são maiores, contudo desconhecidos, pois existem muitas espécies que ainda não foram descobertas.

Além da sua importância ambiental o Cerrado é o lar de cerca de 12,5 milhões de pessoas que vivem e dependem dos seus recursos naturais. São indígenas, quilombolas, pequenos agricultores, populações que tem o seu modo de vida tradicional ameaçados pelo desmatamento causado pelo avanço de projetos como o Matopiba.

Áreas isoladas da Amazônia receberão financiamento para energia renovável

Áreas isoladas da Amazônia receberão financiamento para energia renovável

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O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) aprovou na última terça-feira (14) condições especiais de financiamento para projetos de geração renovável de energia elétrica a serem implementados em áreas isoladas da região amazônica em parceria com a Amazonas Energia, distribuidora de energia elétrica controlada pelo Sistema Eletrobras.

De acordo com o BNDES, o Amazonas tem atualmente 225 usinas a diesel, com capacidade instalada de 683 megawatts (MW) que consomem, por ano, 687 milhões de litros do combustível. O sistema emite cerca de 2 milhões de toneladas de dióxido de carbono (CO2), outros gases poluentes (NOx e SOx) e particulados, além do risco de poluição dos rios decorrentes de naufrágios ou vazamentos no transporte e armazenamento do combustível.

Com a medida, os itens financiáveis dos projetos – a serem licitados na Segunda Etapa do Leilão 002/2016 da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel), agendado pelo Ministério de Minas e Energia (MME) para o dia 11 de maio – poderão usar 15% de recursos do Fundo Nacional de Mudanças do Clima, com taxa anual de 1%.

O financiamento poderá ainda ser complementado em taxa de juros de longo prazo (TJLP), cuja taxa atual é de 7,5% ao ano, até o percentual de 80% previsto nas novas políticas operacionais do BNDES. Os projetos de energia solar e micro, pequenas e médias empresas que usarem os recursos do Fundo Clima poderão complementar o financiamento com mais 65% em TJLP e as demais fontes renováveis, como eólica e biomassa, em até 55%.

O prazo de carência do financiamento é de até seis meses após a entrada em operação comercial do projeto e o prazo de amortização será inferior, em pelo menos dois anos, ao término do prazo do Contrato de Compra e Venda de Energia.

Segundo o BNDES, o leilão da Aneel já recebeu a inscrição de 36 projetos de energia renovável. O Fundo Clima poderá destinar até R$ 200 milhões para financiar esses empreendimentos, que terão prazo de até 24 meses para utilização dos recursos após a data do leilão. O Contrato de Compra e Venda de Energia terá prazo de até 15 anos.

Fundo Clima

Vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, o Fundo Clima é um dos principais instrumentos da Política Nacional sobre Mudança do Clima para apoio financeiro a projetos de redução de emissões de gases de efeito estufa. As aplicações não reembolsáveis são feitas pelo ministério e as reembolsáveis administradas pelo BNDES, seguindo diretrizes do Comitê Orientador do Fundo Clima, presidido pelo Ministério do Meio Ambiente.

Desde 2011, mais de 190 projetos não reembolsáveis foram contratados pelo Fundo Clima, dos quais 65 foram concluídos, contribuindo para o alcance das metas de assumidas pelo Brasil no Acordo de Paris, em 2015.

Reciclagem, comidas orgânicas, andar de bicicleta… não é assim que nós salvaremos o planeta

 

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Este contexto fez aparecer claramente a separação de classes: antes que a névoa não chegasse a fechar os aeroportos, somente aqueles que possuíam os meios de comprar um bilhete de avião puderam deixar as cidades. Para isentar as autoridades, os legisladores de Pequim chegaram a classificar a névoa entre as catástrofes meteorológicas, como se fosse um fenômeno natural, e não uma consequência da poluição industrial. Uma nova categoria veio então se juntar a longa lista de refugiados que fogem das guerras, das secas, dos tsunamis, dos terremotos e das crises econômicas: os refugiados da fumaça.

No entanto, o “arpocalipse” não tardou em ser objeto de uma normalização. As autoridades chinesas, obrigadas a darem conta da situação, aplicaram medidas para permitir aos cidadãos que continuassem com sua rotina diária. Eles lhes recomendaram ficar fechados em casa e não saírem senão em caso de necessidade, munidos de uma máscara de gás. O fechamento das escolas fez a alegria das crianças. Uma escapada para o campo se tornou um luxo e Pequim viu prosperar as agências de viagem especializadas nessas pequenas excursões. O essencial era não entrar em pânico, agir como se nada tivesse acontecido.

Uma reação compreensível, se consideramos que “quando somos confrontados com alguma coisa tão completamente estranho a nossa experiência coletiva, nós não realmente a vemos, mesmo que a prova seja esmagadora. Para nós, essa “alguma coisa” é um bombardeio de imensas alterações biológicas e físicas do mundo que nos alimentou”. Nós níveis geológicos e biológicos, o ensaísta Ed Ayres enumera quatro “picos” (desenvolvimento acelerados) aproximando assintoticamente o ponto além do qual se desencadeará uma mudança qualitativa: crescimento demográfico, o consumo de recursos limitados, emissão de gases carbônicos, extinção em massa das espécies.

Diante dessas ameaças, a ideologia dominante mobiliza mecanismos de dissimulação e cegueira: “Entre as sociedades humanas ameaçadas prevalece um padrão geral de comportamento, uma tendência a fechar os olhos ao invés de se concentrar na crise, algo um tanto vão.” Esta atitude é aquela que separa o saber e a crença: nós sabemos que a catástrofe (ecológica) é possível, mesmo provável, mas nós nos recusamos a acreditar que ela vai acontecer.

Quanto o impossível se torna normal

Lembre-se do sítio de Saravejo no início dos anos 1990: que uma cidade europeia “normal” de cerca de 500.000 habitantes se encontrasse cercada, esfomeada, bombardeada e aterrorizada por atiradores de elite durante três anos teria parecido inimaginável antes de 1992. Em um primeiro momento, os habitantes de Saravejo acreditaram que essa situação não duraria. Eles pensavam em enviar seus filhos para um lugar seguro durante uma ou duas semanas, até que as coisas se apaziguassem. Todavia, muito rapidamente, o estado de sítio se normalizou.

Essa mesma alternância do impossível ao normal (com um breve interlúdio de choque e pânico) é evidente na reação do establishment liberal americano em face da vitória de Trump. Ela se manifesta igualmente na forma como os Estados e o grande capital enxergam as ameaças ecológicas tais como o derretimento da calota glacial.  Os políticos e gestores que, ainda recentemente, excluíam a ameaça de aquecimento global como um complô crypto-comunista ou, ao menos, como um prognóstico alarmista e infundado, nos asseguram que não há qualquer razão para pânico, considerando agora o aquecimento global como um fato estabelecido, como um elemento normal.

Em Julho de 2008, uma reportagem da CNN, “The Greening of Greenland” (“A Groenlândia se torna verde”), exaltou as possibilidades abertas pelo derretimento do gelo: que felicidade, os habitantes da Groenlândia vão agora cultivar seus jardins! Essa reportagem foi indecente na medida em que ela aplaudia os benefícios marginais de uma catástrofe mundial, mas sobretudo porque ela associava o “esverdeamento” da Groenlândia, consequência do aquecimento global, a uma tomada de consciência ecológica. Em “A Doutrina do Choque”, Naomi Klein mostrou como o capitalismo mundial explora as catástrofes (guerras, crises políticas, catástrofes naturais) para fazer tábula rasa das velhas constrições sociais e impor sua própria agenda. Longe de desacreditar o capitalismo, a ameaça ecológica não fará talvez que promove-lo ainda mais.

Bata no seu peito

Paradoxalmente, as próprias tentativas para combater outras ameaças ambientais podem agravar o aquecimento dos polos. O buraco na camada de ozônio ajuda a proteger a Antártida do aquecimento global. Se ele fosse levado a diminuição, a Antártida poderia ser pega no aquecimento do resto do planeta. Da mesma forma, está na moda enfatizar o papel decisivo do “trabalho intelectual” em nossas sociedades pós-industriais. Ora, hoje, o materialismo opera uma reação, como testemunha a luta por recursos escassos (alimentos, água, energia, minerais) ou a poluição do ar.

Mesmo quando nós nos dizemos prontos para assumir a nossa responsabilidade, podemos ver que existe aí um truque que visa esconder a sua verdadeira amplitude. Há algo falsamente tranquilizador nesta prontidão para bater em nosso próprio peito. Sentimo-nos culpados de bom grado porque, se somos culpados, é que tudo depende de nós, nós é que puxamos as cordas, basta mudarmos o nosso estilo de vida para sairmos dessa. Aquilo que é mais difícil para nós aceitar, nós ocidentais, é ser reduzido a um papel puramente passivo de um observador impotente. Nós preferimos nos lançarmos a um frenesi de atividade, reciclar nosso desperdício de papel, comer orgânicos, dar-nos a ilusão de fazer algo, dar a nossa contribuição, como um torcedor de futebol bem acomodado em seu sofá na frente de uma tela de TV, que acredita que as suas vociferações influenciarão o resultado do jogo.

Em matéria de ecologia, a negação típica consiste em dizer: “Eu sei que estamos em perigo, mas eu não acredito realmente nisso, então por que mudar meus hábitos?” Mas há uma negação inversa: “Eu sei que não podemos fazer muito para interromper o processo que arrisca nos levar a nossa ruína, mas essa ideia é para mim tão insuportável que eu vou tentar, mesmo que isso não sirva para nada”. Este é o raciocínio que nos leva a comprar produtos orgânicos. Ninguém é ingênuo o suficiente para acreditar que as maçãs rotuladas como “orgânicas”, meio podres e muito caras, são mais saudáveis. Se nós optamos por compra-las, não é simplesmente como consumidores, é na ilusão de fazer algo útil, dar provas da nossa crença, nos dar boa consciência, participar de um vasto projeto coletivo.

Retorno a Mãe Terra?

Vamos parar de nos enganar. O “arpocalypse” chinês mostra claramente os limites deste ambientalismo predominante, estranha combinação de catastrofismo e de rotina, de culpa e indiferença. A ecologia é agora um grande campo de batalha ideológico onde se desenrola uma série de estratégias para escamotear as reais implicações da ameaça ecológica:

  • A ignorância pura e simples: é um fenômeno marginal, que não merece que nós nos preocupemos com ela, a vida (do capital) está em curso, a natureza se encarregará dela mesma;
  • A ciência e a tecnologia podem nos salvar;
  • O mercado resolverá os problemas (pela taxação dos poluidores, etc.);
  • Insistência sobre a responsabilidade individual no lugar de vastas medidas sistemáticas: cada um deve fazer aquilo que pode, reciclar, reduzir seu consumo, etc.;
  • O pior é sem dúvida um apelo a um retorno ao equilíbrio natural, a um modo de vida mais modesto e mais tradicional pelo qual nós renunciamos a hubris humana e nos tornamos novamente crianças respeitosas da Mãe Natureza.

O discurso ecológico dominante nos interpela como se fôssemos culpados a priori, em dívida com nossa Mãe Natureza, sob a pressão constante de um superego ecológico: “O que você fez hoje pela Mãe Natureza? Você jogou o seu velho papel no recipiente de reciclagem previsto para ele? E as garrafas de vidro, as latas? Você pegou o seu carro enquanto você poderia ter ido de bicicleta ou de transportes públicos? Você ligou o ar condicionado em vez de abrir as janelas?”

As implicações ideológicas de tal individualização são evidentes: totalmente ocupado em fazer meu exame de consciência pessoal, eu esqueço de me colocar questões muito mais pertinentes sobre a nossa civilização industrial como um todo. Esta empreitada de culpabilização encontra também uma saída mais fácil: reciclar, comer orgânicos, utilizar fontes de energia renováveis, etc. Em boa consciência, nós podemos continuar nosso alegre caminho.

Mas então, o que devemos fazer? Em sua última obra, “Was geschah im 20. Jahrhundert” (ainda sem tradução N.T.) Sloterdijk denúncia a “paixão do real” característica do século precedente, terreno fértil para o extremismo político que leva ao extermínio dos inimigos, e formula propostas para o século XXI: nós, seres humanos, não podemos minimizar os danos colaterais gerados pela nossa produtividade. A Terra não é mais o plano de fundo ou o horizonte de nossa atividade produtiva, mas um objeto finito que nós arriscamos tornar inabitável acidentalmente.

Mesmo quando nos tornamos poderosos o suficiente para afetar as condições elementares de nossa existência, nós devemos reconhecer que somos uma espécie entre outras sobre um pequeno planeta. Esta tomada de consciência exige uma nova maneira de nos inscrevermos em nosso ambiente: não mais como um trabalhador heroico que expressa seu potencial criativo através da exploração de seus recursos inesgotáveis, mas como um modesto agente que colabora com o seu entorno e que negocia permanentemente um nível aceitável de segurança e estabilidade.

A solução: Impor uma solidariedade internacional

O capitalismo não se defini justamente pelo desprezo dos danos colaterais? Em uma lógica onde somente o lucro importa, os danos ambientais não estão incluídos nos custos de produção e são em princípio ignorados. Mesmo as tentativas de taxar poluidores ou de colocar um preço sobre os recursos naturais (incluindo o ar) estão condenadas ao fracasso. Para estabelecer uma nova forma de interação com o nosso meio ambiente, é preciso uma mudança política e econômica radical, isso que Sloterdijk chama de “domesticação da besta selvagem Cultura”.

Até agora, cada cultura disciplina seus membros e lhes garante a paz civil através dos meios do poder estatal. Mas as relações entre as diferentes culturas e Estados permanecem constantemente ameaçadas por uma guerra potencial, a paz não sendo que um armistício temporário. Hegel mostrou que a ética de um Estado culmina neste supremo ato de heroísmo, a vontade de sacrificar sua vida para a nação. Em outras palavras, a barbárie das relações interestatais serve de fundamento para a vida ética no próprio seio de um Estado. A Coreia do Norte, lançada à corrida dos armamentos nucleares, ilustra bem essa lógica de soberania incondicional do Estado-nação.

A necessidade de civilizar as próprias civilizações, de impor uma solidariedade e uma cooperação universal entre todas as comunidades humanas se tornou muito mais difícil com o aumento da violência sectária e étnica e pela vontade “heroica” de se sacrificar (assim como o mundo inteiro) em nome de uma causa. Superar o expansionismo capitalista, estabelecer uma cooperação e solidariedade internacional capaz de gerar um poder executivo que transcenda a soberania do Estado: não é assim que poderemos esperar proteger nossos bens comuns naturais e culturais? Se essas medidas não tendem em direção ao comunismo, se eles não implicam um horizonte comunista, então o termo “comunismo” está vazio de sentido.