Campo: cresce a resistência ao modelo ruralista

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“O patrimônio genético agrícola brasileiro deveria ser tratado como um tema de segurança nacional. No entanto, o que estamos vendo é esse patrimônio está sendo seqüestrado das comunidades e armazenado em bancos de germoplasma para ser utilizado por transnacionais. A erosão genética no Brasil já é muito grande.” A advertência é de José Maria Tardin, integrante do Conselho Gestor e educador na Escola Latinoamericana de Agroecologia (ELAA), localizada no assentamento Contestado, no Paraná. Tardin atua na formação em agroecologia nas escolas técnicas do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e em cursos de especialização em agroecologia organizados pelo MST em parceria com universidades e institutos de pesquisa no Brasil e em vários países da América Latina.

Tardin esteve em Porto Alegre participando de um debate organizado pela Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan) sobre a relação entre a agroecologia e os saberes de comunidades tradicionais. Além disso, participou de um seminário organizado pelo setor de educação e produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul que discutiu a introdução da agroecologia nas escolas infantis e de ensino fundamental do MST em nível nacional. “Serão milhares de crianças que, nos próximos anos, estudarão agroecologia sistematicamente. Estamos dando um passo que representa uma das maiores alegrias da minha vida”, diz Tardin.

Filho de agricultores e trabalhando há décadas com o tema da agroecologia, Tardin fala, em entrevista ao Sul21, sobre as raízes tradicionais desse tipo de agricultura no Brasil, destaca a decisão do MST de definir a agroecologia como uma agenda estratégica para o movimento e aponta os preconceitos e ameaças que pairam sobre a agricultura camponesa no Brasil, na América Latina e em todo o mundo. A erosão genética e a perda de saberes tradicionais são algumas delas.

Como nasceu seu envolvimento com a agroecologia e, mais especificamente, com o ensino da agroecologia em escolas técnicas em diversos países da América Latina?

José Maria Tardin: Nasci no interior de São Paulo, filho de uma família camponesa que migrou das montanhas do Rio de Janeiro e se instalou em Martinópolis, região oeste do Estado. Meus pais chegaram nesta região como sem terra, conseguiram se estabelecer, mas depois perderam a terra no processo da Revolução Verde. Eu e um irmão fomos os únicos que seguiram na agricultura. Meus outros irmãos foram para outras áreas profissionais. Acabei indo para o Paraná onde morei por 34 anos, trabalhando como técnico. Em 2005, me engajei organicamente no Movimento Sem Terra, com a responsabilidade de atuar com as equipes que estavam dando início à criação da rede de escolas técnicas de agroecologia do MST e da Via Campesina. Desde aí, estou envolvido nesta área de militância em toda a América Latina.

Nos últimos anos, o arroz orgânico se tornou um carro-chefe da produção dos assentamentos do MST no Rio Grande do Sul. Qual a dimensão hoje do trabalho com a agroecologia promovido pelo MST, pela Via Campesina e por outras organizações ligadas à agricultura familiar?

José Maria Tardin: A agroecologia aparece de distintas maneiras no trabalho do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Se olharmos para a origem do MST, o primeiro campesinato que vai constituir o movimento vem de uma tradição que chamamos de agricultura tradicional. É um campesinato meeiro, sem terra, agregado, mas que vinha com uma larga experiência de uma agricultura de base ecológica bastante estabelecida. Parte deles, dependendo da situação, já adotava algumas práticas da agricultura industrial, sobretudo o uso de fertilizantes e de sementes certificadas. Essas famílias, na medida que foram se estabelecendo, passaram a reproduzir essa agricultura tradicional, preservando um patrimônio de conhecimento e também um patrimônio genético agrícola crioulo bastante diversificado. Isso ainda é muito forte no Norte, Nordeste e partes do Centro-Oeste do Brasil.

Outra vertente que fará esse trabalho emergir no MST é a influência de agrônomos que tiveram uma formação bastante sensibilizada pela organização interna dos estudantes da FEAB (Federação dos Estudantes de Agronomia) que tiveram um contato muito forte com agroecólogos pioneiros, sobretudo nos anos 80, que se articularam em um movimento chamado de agricultura alternativa. Esse movimento contestava a Revolução Verde com muita competência técnica e científica e capacidade de mobilização política. Muitos estudantes de agronomia foram atraídos a esse ideário de agricultura alternativa. Muitos deles, ao entrarem no Movimento Sem Terra, passaram a dinamizar, junto a essas famílias que tinham uma formação de agricultura tradicional, uma agricultura agroecológica.

Um exemplo disso aqui no Rio Grande do Sul é a Bionatur, que alia o perfil de uma agricultura tradicional com o de agrônomos militantes muito ativistas e entusiasmados com a ideia da agricultura orgânica. Em regiões como o Nordeste brasileiro, onde o campesinato sertanejo tem uma forte base tradicional, esse conhecimento tradicional foi se mantendo numa escala que, mesmo dentro do Movimento Sem Terra, não se tem uma noção exata do tamanho. Isso ainda não foi mapeado, mas é muito expressivo. Estou enfatizando muito o Nordeste porque é onde se concentra 70% da base social do MST com experiências bastante diversas.

Há cerca de dois anos fui ao assentamento Maceió, no Ceará, que possui 16 quilômetros de praia. É uma praia paradisíaca, super-preservada, com dunas lindas. É uma assentamento grande, com mais de 500 famílias, que está sendo ameaçado por empresas de resort que querem tomar parte da área da praia para instalar hotéis de luxo. Outro setor empresarial que pressiona o assentamento é o da energia eólica. Eles precisam manter um acampamento permanente na praia para protegê-la da invasão empresarial. É uma rotina de 24 horas por dia e 365 dias por ano. O MST, como ato político para repercutir nacionalmente, criou lá a regata dos Sem Terra no mês de julho, que reúne milhares de pessoas.

As famílias vivem da agroecologia e da pesca com jangadas. É uma agricultura tradicional. Não são pessoas que passaram por um movimento agroecológico. É a tradição camponesa do sertanejo que ocupa a terra no litoral e realiza uma agricultura extremamente diversificada, em um padrão muito próximo do modelo agroflorestal, complementando essa atividade econômica com a pesca de jangada. É um assentamento totalmente coletivizado, sem divisão em lotes. Essa, aliás, é uma característica muito forte no Ceará, tanto no litoral como no sertão. As famílias têm um processo de organização dos assentamentos muito coletivizado, o que é muito mais desafiador em vários sentidos. Sempre desafiei os estudantes do MST do Ceará a pesquisar esse fenômeno, mas ainda não foi feita nenhuma pesquisa a respeito. É algo ainda a ser investigado.

Outra vertente que vai influenciar o MST, do ponto de vista da agroecologia, é a articulação nacional para além do campo, que produziu interfaces com ONGs ambientalistas, de agricultura orgânica, alem do próprio processo da Eco 92, no Rio de Janeiro, e do Fórum Alternativo dos Povos que ocorreu naquela ocasião. Vem daí também uma certa tensão que se desenvolveu entre o MST e setores ambientalistas que acusavam o movimento de ser degradador da natureza. Tudo isso foi desafiando o movimento a ir se qualificando neste tema. Outro acontecimento importante, em 1993, foi a presença do MST como fundador da Via Campesina internacional. Isso lançou os militantes do movimento em um processo de intercâmbio internacional que nos permitiu conhecer comunidades camponesas de agricultura ecológica de dois, três mil anos de história, na América Latina, na Ásia e, mais recentemente, na África. Essa efervescência internacional do campesinato trouxe para o MST uma gama diversificada de conhecimentos.

Quando a agroecologia passou a integrar formalmente a agenda programática do movimento?

O quarto congresso nacional do MST, que ocorreu em Brasília, em 2000, definiu a agroecologia como uma política estratégica do movimento. O tema passou, a partir daí, integrar as diretrizes nacionais do movimento. A orientação estratégica passou a se reorientar as famílias para fazer essa passagem da agricultura convencional para a agroecológica. Uma das primeiras decisões que o MST tomou para concretizar essa diretriz foi começar a formar técnicos. Esses técnicos não estavam disponíveis. Pelo contrário, eram raros. Assim, a formação de técnicos foi a prioridade das prioridades. Naquele momento, não existia no Brasil nenhum curso de formação em agroecologia. O MST deu um passo de vanguarda e iniciou uma experiência ainda embrionária, em 2001, para testar currículo e método pedagógico. Em 2002, começaram os primeiros cursos técnicos de agroecologia no Paraná. Em 2003, iniciaram os cursos também no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Espírito Santo, surgindo um grupo de escolas de nível médio para formar as primeiras turmas de técnicos em agroecologia.

O andar dessa experiência gerou uma efervescência no movimento e logo depois se decidiu que era preciso partir logo para cursos de graduação. Essa costura foi feita pela Via Campesina Latinoamericana. Em 2005, durante o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, foi assinado um termo de cooperação com representantes dos governos do Brasil e da Venezuela para, entre outras coisas, criar a Escola Latinoamericana de Agroecologia no Paraná e do Instituto Latinoamericano de Agroecologia, na Venezuela. Assim, em apenas cinco anos, passamos de uma situação onde não havia nenhuma escola de agroecologia no Brasil para a criação da primeira escola de graduação. Logo depois, criamos outra escola no Pará, no assentamento Zumbi dos Palmares. Impulsionada por essas experiências, a Via Campesina criou o Iala Guarani, no Paraguai, o Iala Maria Cano, na Colômbia e o das Mulheres Campesinas, no Chile. Queremos abrir também uma escola no Haiti, mas lá a situação é mais complicada.

O ponto de partida de todo esse processo foi a escola cubana. Quem saiu na frente em educação em agroecologia na América Latina foi o Estado cubano, logo depois da queda do Muro de Berlim e da crise que se seguiu em Cuba em função do colapso da União Soviética e do leste europeu. O governo cubano deliberou que era preciso encontrar soluções técnicas para dar conta das demandas de alimentação. Foi um processo interessante, pois Cuba tinha adotado totalmente a Revolução Verde, com um modelo de agricultura industrial subsidiado pela União Soviética.

Os pesquisadores foram para as áreas mais longínquas das montanhas para falar com os camponeses que mantiveram a agricultura tradicional e não entraram na Revolução Verde. Esses camponeses tinham preservado todo um campo de conhecimento e material genético agrícola, vegetal e animal. Com base neste conhecimento e com a qualidade científica dos pesquisadores cubanos, foi iniciado um programa enorme de pesquisa em agroecologia e de educação em agroecologia. Antes de iniciar a nossa experiência, alguns militantes nossos foram para Cuba para conhecer esse sistema de pesquisa e de educação que já estava andando lá desde 1994. A nossa experiência piloto iniciou em 2001. Cuba criou um programa nacional em agroecologia e é hoje a grande escola latinoamericana nesta área. Hoje, o país tem 100 mil famílias camponesas fazendo agroecologia.

Ainda hoje há um certo senso comum que associa a agricultura tradicional ao atraso. Você poderia dar alguns exemplos de como esse conhecimento tradicional tem atualidade para dar conta de problemas do presente?

O campo em geral, sobretudo na America Latina, sofre uma discriminação enorme. É muito difícil para o campesinato e para os povos indígenas se afirmarem como detentores de saberes importantes para a sociedade. Há um poderoso histórico de negação dessa sabedoria. Se conhecermos minimamente a história da agricultura, essa tese cai por terra. A sociedade só chegou a ser o que é hoje porque, um dia, mulheres e homens no campo descobriram a germinação da semente, começaram a domesticar animais e a desenvolver o que somos hoje. O desconhecimento desse processo histórico é uma das razões pelas quais a população camponesa, indígena, quilombola e ribeirinha não seja considerada como detentora de conhecimento. Esse é um traço da ideologia dominante para desqualificar essas populações.

Hoje, em qualquer lugar do mundo, você vai encontrar essas populações resistindo a toda essa pressão não só ideológica, mas que se expressa de diferentes formas, mantendo seus conhecimentos e a agrobiodiversidade que é a base da agricultura. Hoje, em nível mundial, 70% da alimentação da humanidade é produto do trabalho camponês, da agricultura familiar. Essa não é só uma realidade brasileira.

Eu comecei trabalhar no Paraná em 1981 e tive uma experiência que foi muito forte para mim. Em todo o centro-sul do Paraná e em parte do norte de Santa Catarina, o campesinato gerou um sistema muito específico chamado de “faxinal”, termo que pode ser traduzido como “mata rala”. Era um sistema autogestionário com um grande território em comum chamado de “criadouro”, dentro do qual eram mantidos os animais. Essa área também tem um espaço de floresta, caracterizando um sistema silvo-pastoril, com pastagem nativa e erva mate em grande quantidade. As famílias moravam aí dentro, cada uma com um pequeno quintal para cultivar coisas do dia-a-dia. Os rebanhos, altamente diversificados, eram criados soltos dentro desse território.

A bibliografia que eu conheço, que pesquisou um pouco mais a fundo esse sistema, relata que ele tem suas origens no início do século 19, em especial a partir da chegada de grandes levas de imigrantes. Uma pesquisadora do Paraná relatou que os caboclos faziam pequenas roças a partir da abertura de clareiras na Mata Atlântica. Essa roça era cercada por causa da presença dos animais silvestres. Com a chegada dos imigrantes europeus em grande quantidade, esse sistema se inverteu. Eles aumentaram a área dos rebanhos e passaram a morar nesta mesma área, fazendo a agricultura para fora da cerca. Quando você anda por essa região verá que os animais estão nas partes mais planas, onde tem água, e a agricultura está na parte mais acidentada.

A produção desse sistema era muito grande e altamente diversificada. Quando cheguei lá, em 1981, era raro ver uma família usar um fertilizante químico. A diversidade agrícola era enorme e o grau de soberania alimentar era pleno. Além disso, todas essas comunidades tinham alguma agroindústria de erva mate, farinha de mandioca ou de milho. As escolas também eram comunitárias e, em um período mais antigo, eram bilíngües, dependendo da presença de cada grupo, tinhas grupos de teatro e uma sociabilidade muito grande, com uma forte presença religiosa.

O que houve com esse sistema?

José Maria Tardin: Na década de 80, a Revolução Verde penetrou com força na região e detonou quase tudo. Hoje, existe um movimento dos faxinalenses para tentar salvaguardar alguma coisa. Se você anda na região hoje, as comunidades continuam se identificando como habitantes do faxinal, mas são pouquíssimas que mantém os criadouros comunitários. Entraram muitos agricultores de fora que compraram terras e começaram outros plantios como é o caso da soja. Foi um processo com muito conflito. Participei de assembleias comunitárias realizadas em um clima de rebelião. Mas a maioria do sistema desmoronou. Eu vi essas comunidades serem destruídas pela Revolução Verde. Lamentavelmente, essa experiência foi pouquíssimo estudada.

Algo similar a isso ainda é muito forte no Nordeste, onde há um sistema chamado de “fundo de pasto”. É uma grande área de uso comunitário para os animais. As famílias manejam os seus animais em um curral próprio e depois eles são soltos em uma vasta região que eles chamam de fundo de pasto, alimentando-se de forragem nativa. Eles vivem na caatinga mesmo. Esses sistemas tradicionais nunca foram apoiados por políticas públicas. Foram sendo construídos e sustentados pelas próprias famílias, sem um anteparo de políticas de Estado. O potencial agroecológico deles é enorme e a sua produtividade muito alta. Eu duvido.

O argumento da produtividade costuma ser utilizado contra essas formas de agricultura camponesa…

Sim. É uma grande mentira. Nestes sistemas de agricultura camponesa, a produção de alimentos é fantástica. É uma farsa essa história que o nordestino sertanejo é um lascado miserável que está sempre morrendo de fome. É uma versão preconceituosa.

Outro exemplo importante ocorre na Amazônia. As quebradeiras de côco e de babaçu, depois de muita luta, conquistaram uma legislação importante. O babaçu é uma árvore protegida por lei. Um latifundiário não pode derrubar os babaçuais e as mulheres têm o direito de entrar nas fazendas para colher o babaçu. Elas têm livre acesso a qualquer área onde tenha babaçu, não interessa se é de um empresário de São Paulo ou de uma transnacional. Com isso, elas fazem um enorme trabalho de preservação da floresta e dessa espécie em particular. É um sistema extrativista 100% sustentável, envolvendo uma escala territorial gigantesca. São milhares de pessoas trabalhando nesta modalidade que eles mesmo geraram dentro da Amazônia, assim como tivemos também o caso fantástico do movimento extrativista gerado pelos seringueiros, do qual Chico Mendes foi uma das principais lideranças.

Um documentário intitulado “Para onde foram as andorinhas?” mostra que onde o agronegócio está chegando na região amazônica está gerando um impacto avassalador dentro dos territórios indígenas. A deriva dos herbicidas começa a afetar a vegetação e as frutas. Mesmo sendo aplicado com trator, uma quantidade razoável de agrotóxico vai embora com o vento. No caso da pulverização aérea nem se fala. Aí é crime total. É guerra do Vietnã mesmo. Esse documentário mostra que, quando eles começam a usar agrotóxico na soja, as nuvens de percevejo que atacam a soja vão para dentro da floresta e atacam as frutas nativas e as cultivadas pelas comunidades indígenas. O percevejo da soja é transmissor de um vírus que detona a produção de alimentos dos indígenas. Bananais, cajueiros, jaqueiras, abacateiros e outras plantas começam a morrer. Esse documentário é doloroso.

O nosso patrimônio genético agrícola deveria ser tratado como um tema de segurança nacional. No entanto, o que estamos vendo é esse patrimônio está sendo sequestrado das comunidades e armazenado em bancos de germoplasma para ser utilizado por transnacionais. A erosão genética no Brasil já é muito grande. O Brasil é um centro de origem da mandioca, por exemplo. Muitas variedades e mesmo espécies estão se perdendo. Essa perda é diária. O livro Século 21: erosão, transformação tecnológica e concentração do poder empresarial, de Pat Roy Mooney, mostra números da perda de biodiversidade em escala global. Antes dessa obra, ele lançou aqui em Porto Alegre outro livro, O escândalo das sementes. Em seu trabalho, ele também pesquisa os genocídios étnicos e a erosão das línguas humanas. O século 21, adverte, será o século do extermínio das línguas locais.

Sistema agroalimentar remove o sentido original da agricultura

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As irregularidades do setor alimentício de carnes, apresentadas recentemente pela Operação Carne Fraca, demonstram um “processo” de “violações de direitos”, que “engloba um ciclo que vai da produção ao aproveitamento do alimento por quem o consome”, e a “imposição” de um “modelo neoliberal e de um sistema agroalimentar corporativo que lhe é funcional”, diz Valéria Burity à IHU On-Line.

Segundo ela, situações como essas ocorrem “porque existe uma opção política em apoiar o agronegócio e isso se dá porque a lógica das normas e das leis ainda favorece grandes empresários, em detrimento de agricultores familiares”. E assevera: “A causa de tudo isso é que o agronegócio tem influência sobre os poderes públicos, e um grande exemplo disso é a Bancada Ruralista do Congresso”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Valéria Burity defende a elaboração de políticas públicas que incentivem a agricultura familiar e medidas regulatórias mais rígidas para o agronegócio e para as transnacionais. “Um Estado efetivamente comprometido com o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas promoveria ações regulatórias sobre a ação das transnacionais e das grandes empresas, sobre a liberação de transgênicos e o uso de agrotóxicos”, pontua.

Valéria Burity é advogada e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é secretária geral da Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar – Fian Brasil.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais violações cometidas por empresas do ramo alimentício no processo alimentar?

Valéria Burity – O processo alimentar, no conceito usado pela Rede de Informação e Ação pelo Direito a se Alimentar – Fian Brasil, engloba um ciclo que vai da produção ao aproveitamento do alimento por quem o consome, e envolve outros elementos, como a possibilidade de exigir direitos. Nesse processo existem grandes violações de direitos. Só para citar algumas, destaco a concentração/grilagem e estrangeirização de terras; a persistência de relações trabalhistas que vulnerabilizam os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras rurais; o uso excessivo de agrotóxicos; a produção de transgênicos sem respeito ao princípio da precaução; a destruição da economia familiar campesina a favor do monocultivo ou de megaprojetos que afetam o campo e as florestas, atingindo, principalmente, povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais e ainda a imposição de um modo agroindustrial baseado na produção de alimentos altamente processados que respondem a necessidades alimentares criadas por outras culturas e interesses.

IHU On-Line – Em artigo recente, ao comentar a Operação Carne Fraca, você mencionou “a pequena capacidade do Estado em fazer frente de maneira efetiva a todas as irregularidades” do setor alimentício. A que atribui essa ineficiência?

Valéria Burity – São as mesmas razões que impedem a superação de violações de direitos humanos no Brasil, como essas que citei antes. Todos esses problemas, com evidentes raízes estruturais, se somam, em décadas recentes, às imposições do modelo neoliberal e de um sistema agroalimentar corporativo que lhe é funcional. Ou seja, um modelo onde os interesses das corporações transnacionais configuram as decisões políticas sobre o setor rural, concentram e verticalizam os recursos e a produção, removem o sentido original da agricultura para o agronegócio ou para a lógica de megaprojetos e depreda tanto o ser humano quanto os bens naturais. Nesse sentido, os fatores estruturais se agudizam ou se readaptam aos interesses desse modo e sistema de produção e consumo. O Estado brasileiro deve fortalecer seu papel regulador em relação à produção, ao abastecimento, à distribuição, à comercialização e ao consumo de alimentos. Um estado efetivamente comprometido com o direito humano à alimentação e à nutrição adequadas, promoveria ações regulatórias sobre a ação das transnacionais e das grandes empresas, sobre a liberação de transgênicos e o uso de agrotóxicos, sobre a publicidade de alimentos, só para citar alguns exemplos.

IHU On-Line – Neste mesmo artigo, você aponta que atualmente no Brasil ocorrem dois fenômenos em relação à comercialização de alimentos: de um lado, a liberalização das regras para o agronegócio e, de outro, a imposição de exigências de produção e comercialização para a agricultura familiar. Pode nos dar exemplos de como esses dois fenômenos ocorrem hoje? Por que essas diferenças ocorrem?

Valéria Burity – Antes de responder, é importante falar sobre agricultura familiar no Brasil. Sempre existiu um apoio maior ao agronegócio em detrimento da agricultura familiar. É verdade que houve um apoio maior à agricultura familiar a partir de 2003, mas sempre houve mais apoio ao agronegócio. Ainda em 2009, quando o ex-relator da ONU para o direito à alimentação, Olivier Dschutter, fez uma missão no Brasil, ele destacou que a agricultura familiar produzia 750 reais/hectare/ano, contra 358 reais/hectare/ano nas plantações de grande escala, e que os grandes proprietários de terra que representavam apenas 1% dos estabelecimentos rurais, captavam mais de 43% de todo o crédito agrícola, enquanto fazendeiros com menos de 100 ha, 88% do total de estabelecimentos, captavam apenas 30%. Porém o último censo agrícola, realizado em 2006, deixou claro que quem alimenta a população brasileira é a agricultura familiar e camponesa. Por essa razão os movimentos que lutam por soberania e segurança alimentar e nutricional no Brasil defendem a aproximação entre quem produz alimento de verdade, a agricultura familiar, e quem consome o alimento.

Só que existe muita dificuldade, por exemplo, na regularização para a comercialização de alimentos tradicionais, artesanais e de base familiar. A legislação sanitária é um dos grandes entraves, pois as normas da legislação são elaboradas tendo como referência a produção agroindustrial de larga escala, e acabam promovendo a concentração de todo processo alimentar, reforçando uma lógica excludente e concentradora da produção, do processamento e da distribuição. O padrão de fiscalização que temos hoje tende a criminalizar alimentos artesanais e tradicionais e dificulta o acesso aos mercados institucionais como o Programa de Aquisição de Alimentos – PAA e o Programa Nacional de Alimentação Escolar – Pnae.

Um exemplo desta criminalização à agricultura familiar foi a Operação Agro-Fantasma, desencadeada pela Polícia FederalPF, em setembro de 2013, que culminou em vários processos judiciais que foram julgados pelo juiz Sérgio Moro, em Curitiba/PR. Diversos agricultores foram presos e, junto a esses, muitos outros de diversas regiões do Paraná foram indiciados pelos crimes de falsificação de documento público, falsidade ideológica, estelionato e associação criminosa. Funcionários da Companhia Nacional de Abastecimento – Conab também foram indiciados por peculato e prevaricação. As acusações diziam respeito, basicamente, a supostos desvios de recursos públicos por parte das associações e cooperativas de agricultores familiares. Segundo a PF e o Ministério Público FederalMPF, isso estaria ocorrendo no momento da entrega dos alimentos às entidades conveniadas (escolas, hospitais, equipamentos públicos da assistência social, entre outros). Segundo as normativas de operação do PAA, toda associação ou cooperativa de agricultores que almejasse entrar no programa para venda de seus produtos alimentares, deveria elaborar um plano no qual estariam discriminadas de forma detalhada as entidades que receberiam os alimentos, bem como os tipos de alimentos e as respectivas quantidades a serem entregues pelos agricultores.

Dessa maneira, no decorrer das investigações da PF, foram apontadas inconsistências nas entregas realizadas pelos/as agricultores/as, com quantidades e tipos de produtos muitas vezes diferentes daqueles indicados meses antes nos planos de entrega originais. Contudo, em análise mais apurada, percebe-se que a inconsistência na entrega dos produtos se deu em razão de questões ligadas à safra, mudanças climáticas e/ou baseadas em outros imprevistos inerentes à vida no campo — motivos esses explicitados, em muitos casos, pelos próprios agricultores no verso das notas fiscais. Passados mais de três anos desde a deflagração da Operação Agro-Fantasma, a maioria das pessoas acusadas foi absolvida devido a pedidos posteriores do próprio Ministério Público Federal. Por outro lado, volumosos exemplos podem ser citados no que se refere à liberalização das regras para o agronegócio.

Segundo relatório recente da Oxfam, existiam no Brasil em 2015 mais de 4 mil pessoas físicas e jurídicas detentoras de terra, as quais possuíam, cada uma, dívidas de ao menos 50 milhões de reais — totalizando quase 1 trilhão de reais. Ao mesmo tempo em que tal dívida existe, o governo Temer editou a Medida Provisória nº 733/2017 (posteriormente convertida na Lei nº 13.340/2016), a qual permite o abatimento de dívidas do agronegócio em porcentagens que variam de 35 a 95% a depender das especificidades da dívida. Outro caso notável é a chamada Lei Kandir (Lei Complementar nº 87/2016), a qual isenta de ICMS produtos primários e secundários destinados à exportação. O mesmo relatório da Oxfam estima em 22 bilhões de reais por ano o prejuízo dos estados com tal lei. Estes são somente dois exemplos, dentre vários, que indicam a dimensão de impactos negativos causados pelo agronegócio — nestes casos, impostos devidos — à sociedade.

Essas diferenças ocorrem porque existe uma opção política em apoiar o Agronegócio e isso se dá porque a lógica das normas e das leis ainda favorece grandes empresários, em detrimento de agricultores e agricultoras familiares. A causa de tudo isso é que o agronegócio tem influência sobre os poderes públicos, e um grande exemplo disso é a Bancada Ruralista do Congresso. E agora tudo caminha para invisibilizar a agricultura familiar e tratar tudo como agronegócio. É isso que se pode concluir quando se extingue o Ministério do Desenvolvimento Agrário, quando se suprime a agricultura familiar do próximo Censo Agropecuário e quando o Programa de Apoio à Agricultura familiar passa a ser chamado de “Agroamigo”.

IHU On-Line – Atualmente são feitas muitas críticas ao incentivo econômico dado pelo Estado ao setor do agronegócio. O que seria uma alternativa a esse modelo?

Valéria Burity – É cada vez mais crescente o número de pesquisas que nos mostram que a agroecologia é a alternativa mais viável, sustentável, saudável e, portanto, necessária para garantir o direito à alimentação em todo mundo. Essa, a propósito, foi a conclusão do ex-relator da ONU para o direito à alimentação, Olivier de Schutter, quando escreveu o informe que encerrou o seu mandato. No mesmo entendimento pode chegar quem observar, por exemplo, as colheitas recentes de arroz agroecológico produzido pelo Movimento dos Sem Terra – MST no Rio Grande do Sul, com números chegando a 400 mil sacas anuais.

IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?

Valéria Burity – É importante destacar que no dia 16 de março um conjunto de organizações e movimentos sociais que integram a plataforma Chega de Agrotóxicos lançou uma petição on-line com o objetivo de mobilizar a sociedade para a aprovação da Política Nacional de Redução de Agrotóxicos – PNaRA. Além de apoiar a aprovação da PNaRA, a plataforma #ChegaDeAgrotóxicos também tem como meta barrar o Projeto de Lei – PL 6.299/2002, conhecido como “Pacote do Veneno”. O Brasil é um dos maiores consumidores de agrotóxicos do mundo e a petição é uma estratégia de mobilização da sociedade na luta contra os retrocessos que podem colocar ainda mais venenos nas mesas das famílias brasileiras.

Outra Agricultura possível: o arroz orgânico do MST

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“Essa atividade é um símbolo da resistência do povo brasileiro. Vocês que vêm se dedicando, nestes 15 anos, a produzir arroz orgânico são motivo de orgulho do nosso movimento e representam a prova de que é possível outra agricultura, sem usar veneno e transgênicos”. Com essas palavras, João Pedro Stédile, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), saudou a abertura oficial da 14o. Colheita do Arroz Agroecológico, sexta-feira (17), no Assentamento Capela, em Nova Santa Rita. Além do valor em si de produzir alimento de qualidade, sem agrotóxicos, Stédile destacou ainda um sentido mais amplo da cerimônia de abertura da colheita do arroz orgânico: “Isso aqui representa um grande projeto popular para a agricultura brasileira, baseado na agroecologia, no cooperativismo e no controle da agroindústria pelos trabalhadores. Vocês são uma espécie de vanguarda apontando qual o caminho a ser seguido”.

A chuva que caiu na região na noite de quinta e na madrugada de sexta levou os organizadores do ato a transferir a abertura oficial da colheita para a parte da tarde. Pela manhã, o ginásio do Assentamento Capela ficou pequeno para acolher todos os convidados para a cerimônia. Segundo estimativa dos organizadores, mais de mil pessoas participaram do encontro. Além de integrantes do MST, vindos de acampamentos e assentamentos de todo o Estado, o ato também contou com a presença do presidente da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, Edegar Pretto, do escritor e teólogo Leonardo Boff, da prefeita de Nova Santa Rita, Margarete Ferretti, do ex-governador Olívio Dutra, do deputado federal Dionilso Marcon (PT-RS), do presidente da Central Única dos Trabalhadores no RS, Claudir Nespolo e da Procuradora da República, Suzete Bragagnolo, do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos, entre outros.

Edegar Pretto destacou que a tradicional da abertura da colheita do arroz orgânico expressa os resultados positivos da reforma agrária que dá certo. “Não é por acaso que o MST realiza essa grande celebração na abertura da colheita do arroz. A luta pela reforma agrária tem muitos percalços e esse momento é motivo de celebração para os assentados que comemoram mais uma colheita como uma prova da viabilidade do assentamento e da produção orgânica, como também para os apoiadores da luta do MST. Estamos dizendo aqui, com alegria e emoção, que a luta que nós fizemos é uma luta que vale a pena”.

“Não recuaremos na luta pela terra”

Na abertura do ato, crianças e jovens militantes do MST fizeram uma encenação teatral dos sentidos da luta pela terra e por um outro modelo de produção. A disputa entre a agricultura agroecológica e cooperativada e o agronegócio que pratica o uso intensivo de agrotóxicos e prioriza a produção para exportação foi simbolizada por um cabo de guerra. De um lado, a agricultura que é sinônimo de vida, cooperação e abundância; do outro, a agricultura que produz alimentos cheios de venenos que levam à morte. Embalada pelo refrão “não recuaremos nem um passo na luta pela terra”, a encenação celebrou todo o ciclo da geração do alimento, da semeadura até a colheita.

A solidariedade foi representada por um desfile de bandeiras de entidades e movimentos que apóiam essa luta por um outro modelo de produção: MST, Marcha Mundial de Mulheres, União Brasileira de Mulheres, CUT, União Nacional de Estudantes (UNE), Via Campesina, Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre outros. Ao final, o hino do MST foi cantado de pé por centenas de militantes e apoiadores do movimento.

Após a mística de abertura, Emerson Giacomelli, da coordenação do grupo gestor do arroz agroecológico na Região Metropolitana de Porto Alegre, declarou aberta oficialmente a abertura da colheita do arroz agroecológico. O MST produziu uma edição especial do Jornal dos Sem Terra, que apresenta os números da safra deste ano e da evolução da cultura do arroz agroecológico que começou a ser plantado em 1999 nos assentamentos da Região Metropolitana. Para a safra 2016-2017, a estimativa é colher cerca de 549 mil sacas do grão, numa área plantada de mais de 5 mil hectares. A produção envolve o trabalho de 616 famílias, em 22 assentamentos e 16 municípios gaúchos. Em comparação com a safra do ano passado, houve um aumento de quase 40% na produção. Já a produção de sementes, envolve 25 famílias em nove assentamentos e oito municípios. A estimativa do MST para este ano é colher mais de 22 mil sacas de sementes.

No final da manhã, João Pedro Stédile e Leonardo Boff fizeram uma análise da conjuntura política e econômica vivida pelo país. Para Stédile, o Brasil vive um dos períodos mais difíceis e complexos de sua história. “A economia brasileira, da forma como foi estruturada, continua inserida na periferia do capitalismo mundial. O grande capital internacional controla a nossa economia. Mas o capitalismo está em crise. Hoje, toda a riqueza do trabalho no mundo está concentrada na mão de 50 empresas somente. Com a crise, esse capital internacional vem para o Brasil, não para investir, mas para recuperar o lucro que perderam lá fora. Essa crise desequilibrou a estrutura de classes no Brasil que, no período do governo Lula, viveu um certo equilíbrio. Esse equilíbrio não existe mais. O navio começou a afundar e a burguesia brasileira está na linha do cada um por si”.

Tentando se salvar, acrescentou o dirigente do MST, a burguesia, a partir de 2013, começou a conspirar para assumir também o controle absoluto do Executivo e do Legislativo. “Gastaram seis bilhões de reais, em 2014, para eleger esse Congresso que é o pior da história. Perderam a eleição para presidente e passaram a conspirar permanentemente contra a Dilma. Foram beneficiadas pelas escolhas erradas que o governo Dilma fez na política econômica e que lhe custaram o apoio popular. Quando a burguesia via, pelas suas pesquisas, que o povo não ia defender o governo Dilma, deram o golpe. Em 2016, ficamos só nós, a militância, defendendo Dilma nas ruas contra o golpe. Não foi o suficiente”.

Stédile vê um cenário diferente se desenhando em 2017. Segundo ele, os autores do golpe não entenderam que o capitalismo mundial está em crise e não virá para o Brasil investir, como fizeram após o golpe de 1964, gerando um período de crescimento econômico. Além disso, acrescentou, o governo Temer não tem um centro de direção único, como ocorreu em 1964 e no governo FHC. “Figuras como Temer, Padilha e Jucá são lumpens da política. A burguesia também não gosta deles. O governo golpista não está conseguindo ser popular. Pelo contrario, está tirando direitos do povo e não tem nenhuma sustentação popular. Em 2017, novos ventos estão soprando”, afirmou, apontando três sinais disso:

“O primeiro sinal ocorreu no Carnaval quando, por todo o país, de forma espontânea, o Fora Temer foi adotado pelos blocos populares. O segundo foi no 8 de março que teve uma participação inédita de mulheres nas manifestações de rua. E o terceiro foi agora, no dia 15 de março, na jornada de mobilização contra Reforma da Previdência. Em São Paulo, 200 mil foram às ruas”. Diante deste cenário, Stédile defendeu que Lula lance imediatamente sua candidatura à presidência da República e comece a percorrer o país, denunciando as políticas do governo Temer e propondo um projeto emergencial para o Brasil. “A candidatura de Lula é fundamental na atual correlação de forças. Se o povo engatar nessas mobilizações de rua, as eleições podem ocorrer ainda este ano. Caso contrario, já estaremos com o cavalo encilhado para 2018, com uma vantagem. Sem o PMDB, que conspirou pelo golpe, um novo governo Lula deverá estar baseado, necessariamente, em um projeto popular”.

Leonardo Boff também chamou a atenção para a importância de entender a natureza da crise do capitalismo internacional, inclusive para identificar as raízes do golpe no Brasil. “A política externa dos Estados Unidos está baseada em três princípios: cobrir todos os espaços, construir no mundo um só império e desestabilizar todos os governos que se oponham a esse projeto. Um dos espaços que estava muito livre e solto era o Brasil. Fizeram ensaios de um novo tipo de golpe em Honduras e no Paraguai. Na Argentina, conseguiram resolver com uma eleição. No Brasil, foram para o golpe mesmo”.

Boff mencionou o episódio da viagem do senador tucano Aloysio Nunes para os Estados Unidos no dia em que o golpe foi consumado. “Aloysio Nunes teve uma glória na vida que foi ser motorista de Marighella, Depois traiu todo mundo e agora está traindo o país. O Brasil é uma das grandes potencias ecológicas do planeta, com recursos naturais fabulosos. Estão tentando se apropriar disso. Hoje, há dois projetos em disputa no nosso país: o entreguista e o popular. Temos que derrotar esse projeto entreguista nas ruas e, quando for possível também nas urnas”, concluiu Boff que também defendeu o lançamento imediato da candidatura de Lula para as eleições de 2018.

Após o debate político, foi serviço um almoço para as mais de mil pessoas que participaram do ato. No cardápio, carreteiro, feijão, salada de tomate, repolho e cebola. Depois do almoço, ocorreu a abertura oficial da colheita na lavoura do arroz, com a presença de representantes da Emater, do Incra e de outras entidades. Os assentamentos dominam hoje todo o processo de cultivo do arroz, desde a produção agrícola, passando pela produção industrial e chegando à comercialização. O MST é considerado hoje o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.

Assentamentos do MST produzem alimentos livres de veneno com base agroecológica

Agricultora participa de Feira Orgânica na cidade de Belém, no Pará - Créditos: Carol Lopes

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Na ilha de Mosqueiro, distrito que fica a 72 km da capital Belém, a inciativa familiar e consolidada chamada Lote Agroecológico de Produção Orgânica (Lapo) do assentamento Mártires de Abril, é exemplo de que produzir o próprio alimento livre de veneno e ainda estabelecer uma relação de cumplicidade com a natureza pode ser um ato revolucionário em tempos de avanço da monocultura e uso excessivo de agrotóxicos.

A experiência foi criada pelo casal Mamede Oliveira e Teófila Nunes. Teo, como gosta de ser chamada, atualmente é viúva e tem 64 anos, além de pedagoga por formação é agricultora e militante no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST-PA) e atua na área de produção do movimento.

O lote é um mini sistema de produção agroecológica com pequeno plantio de macaxeira, pimenta do reino, feijão e outros produtos. No terreno há culturas diversificadas de espécies de árvores frutíferas como o cupuaçu, que Teo transforma em polpa. Mas é o açaí e a criação de galinha caipira que ganham destaque. Tudo isso produzido sem uso de veneno ou adubo químico. Para além de ser apenas um lote de produção de alimento o Lapo é um projeto de vida, como ela enfatiza.

“Temos a agricultura agroecológica como uma arma, não é só como alternativa de alimentação, vai além da segurança alimentar com soberania, produz autonomia. É a nossa arma contra o agronegócio, nossa forma de produzir diante do monocultivo que está aí com o capital crescendo cada dia no campo”.

Outro ponto de destaque dessa experiência é a transformação de produtos in natura. Teo conta que extrai da árvore de andiroba o óleo para fazer um gel de massagem, rico em propriedades medicinais e utilizado há muitos anos por comunidades tradicionais na Amazônia. Ela ainda possui três tanques para criação de peixes da espécie tambaqui e produz a própria adubação para o plantio.

A diversidade de uma agricultura agroecológica desenvolvida por essa iniciativa transformou esse ambiente em referência para pesquisas acadêmicas e um espaço político pedagógico com intercâmbio entre estudantes da educação básica, movimentos de mulheres e outros grupos como o Grupo para Consumo Agroecológico (Gruca). A ideia é valorizar a produção de alimentos livres de venenos e ajudar na venda desses produtos formando uma rede de consumidores conscientes.

Consumo consciente

O Gruca vende alimentos oriundos dos assentamentos da reforma agrária e de pequenos produtores em agricultura orgânica da região metropolitana de Belém. Os alimentos são colocados em paneiros, cestas feitas de palha, denominados como paneiros cabanos, nome em alusão a revolta popular da Cabanagem ocorrida na época do Império na então província do Grão-Pará.

Noel Gonzaça, 39 anos é agricultor e idealizador do Gruca. O paraense morou no Rio de Janeiro durante 11 anos e lá fazia parte de um grupo de consumo consciente e compra coletiva. Quando voltou para Belém trouxe na bagagem o desejo de realizar a ideia. Após uma especialização no Núcleo de Ciências Agrárias e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA) encontrou a oportunidade que queria e assim criou o grupo.

Noel lembra que o Gruca recebe alimentos de produtores como Teo, como polpa de fruta, ovos de galinha caipira, mel e macaxeira. Os produtos também chegam do acampamento Jesus de Nazaré, localizado em Santa Izabel. Os paneiros cabanos são vendidos quinzenalmente e divulgados em uma página na rede social, mas Noel lamenta que não possa adquirir mais produtos.

“Se a ideia se espalhasse e surgisse outro grupo, poderia pegar mais alimentos, porque o acampamento Jesus de Nazaré produz bastante, mesmo com as dificuldades que enfrenta como a ausência de energia elétrica. Não tem como pegar uma produção grande, pois o que define a quantidade de paneiros é a demanda”, conclui.

Procura por orgânicos

De acordo com o dossiê Um alerta sobre os impactos dos Agrotóxicos na Saúde produzido pela Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco) os agrotóxicos podem causar diversos problemas a saúde como câncer, má formação congênita, alergias respiratórias, diabetes, distúrbios de tireoide, depressão, aborto e até Mal de Parkinson.

Mesmo que tenhamos consciência em adquirir alimentos mais saudáveis e livres de agrotóxicos não sabemos se estabelecimentos como restaurantes e lanchonetes têm a mesma preocupação, então vale a pena procurar locais que possuem como principio o consumo consciente e a preocupação de que alimento saudável é limpo de veneno.

O Ponto de Cultura Alimentar Iacitatá, como explica a fundadora Tainá Marajoara, 33 anos, não é ‘só um restaurante, é mais do que isso, é um espaço onde se dialoga sobre o alimento de quem produziu e de onde veio. Tainá explica que o espaço serve alimentos livres de venenos e são procedentes de pequenas propriedades, de povos indígenas, de comunidades tradicionais e assentamentos da reforma agrária ligados ao MST.

Ela combate o mito que é propagado de que existe pouca quantidade de alimentos livres de agrotóxicos para atender uma grande demanda. Tainá informa que daqui a 15 dias o ponto de cultura Iacitatá irá participar de um evento onde irá produzir quatro mil refeições servindo comida de base comunitária e sem veneno.

“Essa questão de que não há alimentos sem veneno em grande quantidade isso é uma grande mentira porque a partir do momento que tu trabalhas com a sazonalidade dos alimentos, o agricultor vai ter a quantidade para te fornecer, então tem muita comida limpa, tem muito agricultor especializado em produção de uma escala maior de alimentos sem veneno e isso precisa ser valorizado e publicizado, que é possível fazer e que não é caro comer orgânico e alimentos agroecológicos, basta ter uma relação mais próxima com quem produz”, afirma.

Os alimentos produzidos nos assentamentos da reforma agrária podem ser encontrados na loja o Armazém do Campo, localizado na Alameda Eduardo Prado, região central de São Paulo, 499.

10 COISAS QUE VOCÊ PRECISA SABER ANTES DE COMEÇAR UMA HORTA

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Ao longo desses quase 10 anos trabalhando com agricultura urbana, conheci pessoas que traziam as mais variadas motivações para se cultivar uma horta: saúde, ecologia, organização comunitária, razões políticas, econômicas, ambientais, e um grande etcétera.

E realmente: horta é tudo isso e um pouco mais. Desconheço outras práticas que sejam tão agregadoras, plurais e transversais como a agricultura, principalmente a urbana, orgânica e em grupo.

Felizmente, cada vez mais pessoas tem nos procurado pedindo orientações de como começar uma horta nas mais distintas condições. Por conta disso, resolvi fazer esse pequeno texto com orientações básicas e iniciais para quem se interessar pelo assunto. Obviamente não se trata de um manual, mas de questões a serem consideradas e indicações de aprofundamento.

1) COMO COMEÇAR?

Em geral, estudando e acompanhando quem já faz. Não existe caminho mais seguro que a observação. Se você quer começar uma horta, minha primeira dica é: procure alguém que tenha uma, vá até essa pessoa e converse. Observe como ela trabalha, quais são os desafios, as tarefas e os principais procedimentos. E disponha-se a ajudar. O voluntariado é uma das principais e mais sólidas portas de entrada nesse universo! Depois de estudar e observar, ponha-se a planejar a sua própria horta, de acordo com o espaço e as condições que tiver à disposição. Desenhe, escreva e pesquise: com essas três atitudes, suas chances de sucesso aumentam demais!

2) QUAL ESPAÇO PRECISO TER?

Qualquer um. Uma horta pode ser um conjunto de vasos em uma sacada, um terreno de 100 m² ou dois hectares cultivados. Em se tratando de horta, tamanho não é documento. No entanto, seja qual for o tamanho disponível para começar, o espaço precisa atender a algumas condições básicas: é preciso que haja insolação direta (ainda que em apenas uma parte do dia), que exista solo ou substrato (seja em um vaso, canteiro ou cano para aquaponia), e que se tenha água a disposição. Ar também é um requisito, mas achei que era óbvio demais pra precisar citar (em outras palavras, não faça experiências de produção vegetal no vácuo, rs).

3) O QUE PLANTAR?

Existem inúmeros métodos de plantio, mas vou te contar uma máxima da biologia: quanto mais vida, mais vida. Em outras palavras, prefira os métodos de plantio que agreguem a maior biodiversidade possível à sua horta. Quanto mais vida no solo, no ar e nas plantas, mais resistentes e saudáveis elas serão. Quando for iniciar um plantio você deve primeiro observar ao redor: quais são as plantas presentes na sua região? As mais resistentes, mais adaptadas? A horta não irá produzir tudo o que queremos, mas aquilo que as condições dadas permitirem que seja produzido. É preciso estudar o clima e as características gerais da sua região para escolher os melhores cultivos. Não adianta plantar 100 pés de mamão formosa em uma região fria, alta e montanhosa, pois o fruto não irá se desenvolver adequadamente. Além disso, as plantas interagem entre si, química e fisicamente, por isso, quando colocadas em locais próximos, precisamos conhecer um pouco de sua fisiologia e observar como reagem. O plantio pode ser feito através de mudas, sementes, estacas e pedaços de outras plantas: cada uma tem seu processo reprodutivo e o método de plantio recomendado. Em resumo: o que você irá plantar, depende da área que tem à disposição e das condições climáticas e estruturais. No máximo com 3 ou 4 dias de estudo você já estará pronto para fazer algumas escolhas. E lembre-se: nada melhor do que a prática – tentativa e erro 😉

4) E AS SEMENTES? AS MUDAS?

Como falei, cada tipo de planta exige um método de plantio, que, em termos gerais, pode ser direto (através de sementes) ou por mudas já crescidas. Em geral, raízes como cenoura e rabanete, que não gostam de ser movimentadas uma vez germinadas, devem ser plantadas direto no solo, usando sementes. Já algumas folhosas e solanáceas (como tomate ou pimentão), preferem que se faça a muda em local reservado para, posteriormente, organizá-las nos canteiros ou vasos maiores. Um pouco de estudo irá te mostrar sobre a preferência de cada uma, e nada como uma pesquisa prévia no google antes de qualquer plantio. As mudas e sementes podem ser compradas, trocadas ou conseguidas. Sementes compradas, em geral produzidas por grandes empresas, além da possibilidade de serem geneticamente modificadas, trazem venenos (por isso várias delas são de cor rosa) para evitar que sejam comidas durante o período em que estiverem armazenadas. Por essas (e várias outras) razões, prefira conseguir as chamadas sementes crioulas com amigos e amigas, e pessoas próximas. São sementes naturais, reproduzidas ao e mantidas ao longo do tempos por muita gente. Além disso, prefira também sementes adaptadas à sua região, pois elas já trazem consigo uma certa ‘memória’ genética que irá facilitar seu desenvolvimento. Se você plantar no Pará sementes de milho vindas do Rio Grande do Sul, por exemplo, elas irão demorar algumas gerações de plantio para se adaptar à nova realidade, sendo que sua produção nos primeiros 3 ou 4 anos será menor do que o esperado. Felizmente, são cada vez mais comuns as feiras de trocas de mudas e sementes, e muita gente vai poder te ajudar se você fizer uma postagem no facebook do tipo: “galera, alguém tem sementes de abóbora para me arrumar?”.

5) QUANTAS PESSOAS EU PRECISO JUNTAR PRA COMEÇAR?

Quantas quiserem e puderem. Não há limite mínimo ou máximo. Quanto mais gente, mais capacidade de trabalho, é claro. Mas uma pessoa é mais do que capaz de cuidar de uma horta pequena sozinha. Cada espaço tem suas características: temos hortas domésticas, comerciais, comunitárias… tudo depende do contexto em que nos encontramos. O mais importante é ter alguém ou algum grupo responsável por manter o espaço, regar as plantas, combater as pragas e, é claro, colher os frutos ❤

6) E ÁGUA? COMO CONSEGUIR? QUANTO USAR?

Uma horta precisa de água a disposição. Seja água de chuva armazenada ou do tratamento de sua cidade. Seja usando balde ou mangueira. O importante é que as plantas precisam de água quase diariamente. Cada planta terá sua necessidade mas, em geral, uma rega diária é o recomendado para uma horta. A água da chuva é mais indicada, por não possuir cloro, flúor e outros tantos produtos químicos usados no tratamento, além de ser gratuita. Água de poços, quando estes não afetam a disponibilidade local de água, também é interessante. Prefira essas fontes à água tratada que, além do mais, é cara.

7) QUAL É O MELHOR FORMATO? CANTEIROS? VASOS? MANDALA?

O melhor formato é aquele que melhor aproveita o seu espaço e que se adequa às suas prioridades. O que é principal pra você? Produção? Estética? Funcionalidade? Essa questão será importante na hora de escolher o formato, e uma combinação equilibrada de todos esses fatores é um bom caminho. Na permacultura, preferimos utilizar formas curvas e circulares sempre que possível porque, além de mais agradáveis, criam mais bordas, aumentando nossa área produtiva e facilitando o manejo. O ideal é fazer vários desenhos antes de colocar a mão na massa, pra poder visualizar da melhor forma possível qual será o resultado final. Falando de espaço urbano, sempre vale levar em consideração toda verticalização possível, usando paredes, desníveis e relevos à nosso favor.

8) E SE EU QUISER FAZER UMA HORTA COMUNITÁRIA?

Uma horta comunitária é uma das maneiras mais interessante de aprofundar a sociabilidade entre grupos, pessoas e vizinhos, e pode ser um ótimo tema gerador para organizar uma comunidade. Existem milhares de modelos de hortas comunitárias possíveis, e tudo isso depende da comunidade em questão, seus membros e seu propósito. O principal é encontrar qual é a motivação que unifica a todos os participantes. Oferecer ao bairro uma alimentação alimentar a preços populares? Garantir a soberania alimentar do entorno? Utilizar a horta como ferramenta pedagógica pra crianças e adolescentes? Combater o desperdício de lixo? Auxiliar uma ONG? Enfim, são muitas as possibilidades, e se você quer organizar uma horta comunitária, sua primeira e principal função será encontrar a ‘cola’ entre a horta e as pessoas que você quer engajar, e para isso não existe receita que não a conversa, o diálogo, e a observação. Chame reuniões em seu grupo, exponha sua vontade para as pessoas, escute-as, e planeje coletivamente.

9) PODE SER EM ESPAÇO PÚBLICO?

Sim! A horta pode ser também realizada em uma praça, terreno ou espaço público, desde que haja autorização do órgão competente (prefeitura, governo ou união), proprietário do imóvel. Claro que também é possível plantar seu autorização o que agrada ainda mais algumas pessoas, mas, nesse caso, você estará sujeito a ter seu trabalho perdido e, eventualmente, até mesmo ser notificado ou multado por sua ação. Então, estude bem as consequências e possibilidades, e escolha o melhor caminho. O ideal é que você procure a administração responsável e leve até ela um projeto para área, pedindo sua cessão de uso para uma Organização local, como uma ONG, por exemplo. Isso pode ser facilmente conseguido com boa vontade política e já acontece em milhares de situação Brasil a fora.

10) MAS AFINAL, POR QUE FAZER UMA HORTA?

Como dissemos no início, razões para fazer uma horta não faltam. Eu vou elencar algumas:

– Horta é um jeito da gente se conectar com os ritmos naturais e com o mundo vegetal, elementos dos quais o ritmo urbano nos afasta e aliena;

– A produção de alimentos é encantadora e estimula hábitos físicos e alimentares mais saudáveis;

– Hortas trazem vida para as cidades, com animais, pássaros e muitos outros seres associados aos vegetais cultivados;

– Horta organiza e junta gente. Não tem quem não goste de falar do assunto, e é algo muito agregador;

– Horta é resistência. Mostra que nós podemos buscar mais autonomia, determinar os rumos das nossas próprias vidas, e que não precisamos ser reféns do mercado e das grandes corporações para conseguir existir no mundo.

Espero que esse esforço possa ser útil e estimule as pessoas a darem os primeiros passos nesse universo incrível que é a agricultura! Não tenha dúvida: tendo 1 m² quadrado de sol na sua garagem ou quintal, plante um pé de alface, uma cebolinha, um pouco de salsinha, e seja feliz! Se quiser conversar sobre o assunto, tirar mais dúvidas ou começar algo com nosso apoio, é só entrar em contato 😀

Este negócio quer levar uma jabuticabeira ao seu apartamento

[TEXTO ORIGINAL]

São Paulo – Diante de uma rotina cada vez mais corrida, especialmente nos grandes centros urbanos, muitos negócios apostam no resgate de uma época mais simples. Já falamos sobre a volta dos bolos caseirosdos livros infantis, por exemplo.

Mesmo as pessoas mais urbanas podem ter na memória uma visita a uma fazenda ou sítio – e, lá, a experiência com árvores e frutas tiradas do pé. É essa lembrança que a empresa familiar Jabuticabeira quer resgatar.

O negócio, além de vender a árvore frutífera fisicamente, também aceita encomendas online, com espécies que podem ser plantadas na terra ou em vaso. Ou seja: seu apartamento pode resgatar um pouco dessa experiência de infância.

Só no ano passado, a Jabuticabeira entregou cerca de 3 mil árvores – e, mesmo em ano de crise, pretende aumentar as vendas.

O começo da Jabuticabeira

Antes de inaugurar a Jabuticabeira, o empreendedor Fernando Grando trabalhava no segmento de fertilizantes. Ele passou a infância no interior de São Paulo e conta que sempre foi apaixonado pelo campo.

Aos poucos, foi formando seu próprio pomar e percebeu a demanda que os consumidores tinham pelas jabuticabeiras.

“O projeto nasceu da observação do meu pai de como as pessoas tem paixão por essa fruta, que é 100% brasileira. Muitas passaram pelo interior do país em algum momento da infância e tiveram contato com essa fruta, seja na casa de uma avó, de uma tia ou de um amigo”, explica Pedro Grando, filho de Fernando que é co-fundador e engenheiro agrônomo da empresa.

“É dessa lembrança que identificamos a possibilidade de realizar o sonho dessas pessoas de ‘resgatar’ essa memória. Além disso, seus filhos e netos podem ter a oportunidade de colher uma fruta no jardim de casa.”

A empresa Jabuticabeira foi criada há mais de 20 anos e, no começo, comercializava as sementes. Depois, passou a vender mudas. Por fim, os empreendedores identificaram uma oportunidade na comercialização da jabuticabeira já produzindo frutos.

Hoje, o negócio conta com quatro áreas distintas de plantio, nas cidades de Cerquilo e Laranjal Paulista (São Paulo). No total, são mais de 50 mil árvores plantadas.

Entrada na internet: consultoria e processo de venda

Porém, as estratégias de marketing tradicionais, como anúncios, já não funcionavam tão bem: era preciso reinventar o negócio para continuar crescendo. Por isso, a Jabuticabeira resolveu entrar para o mundo digital, abrindo seu site em 2008.

Quem coordenou esse projeto foi Pedro. “Percebemos que precisávamos ir ao encontro do nosso público alvo, e a internet oferecia essa oportunidade. Por meio do website podemos interagir, responder a dúvidas, ensinar e mostrar parte do nosso trabalho. Dessa forma, as vendas passaram a ser muito mais dinâmicas. Inclusive, atendemos por WhatsApp também”, explica o engenheiro agrônomo.

Primeiro, o cliente informa dados como o porte da jabuticabeira e a variedade desejada (o site oferece dez variedades). Então, há perguntas mais técnicas: qual será o local de plantio e como é o acesso à residência, para poder levar a planta até o ponto em que será plantada. “Essas perguntas fazem com que sejamos mais rápidos no processo de entrega da jabuticabeira”, explica Pedro.

A venda no Jabuticabeira.com é associada a uma consultoria – todos os funcionários da empresa são treinados por engenheiros agrônomos para entender bem sobre o produto comercializado.

“Normalmente, nosso cliente já nos procura sabendo que irá conversar com especialistas e isso nos ajuda bastante”, conta Aline Grando, filha de Fernando que também entrou para o negócio, como gerente comercial. “Assim que o cliente seleciona qual tipo de jabuticabeira quer, nós mandamos fotos, medidas, vídeos e o que mais for necessário para que ele faça uma compra consciente.”

Aline também ressalta que um dos diferencias da empresa, além de sua segmentação e da consultoria, é o pós-venda. “O cliente recebe a árvore com nosso certificado de origem e um manual de cuidados básicos. Além disso, como temos a data do plantio, informamos para ele, via e-mail, o dia exato para iniciar a adubação da Jabuticabeira. Por fim, mantemos um canal de comunicação direta com o cliente para ajuda-lo com dúvidas e também para comemorarmos os primeiros frutos.”

Além do site, a Jabuticabeira possui perfis nas redes Facebook, Instagram e YouTube. Lá, a empresa posta informações sobre a empresa, sobre as variedades de árvores, sobre os cuidados com as plantas e os bastidores da produção.

Uma jabuticabeira pode custar a partir de 150 reais (mini-árvore, com cerca de cinco anos). Porém, o negócio se especializa em jabuticabeiras adultas e extremamente produtivas, com cerca de 13 anos de idade. Essas podem custar de 1 mil até 6 mil reais, um valor que depende principalmente da variedade de jabuticabeira escolhida pelo cliente. O ticket médio é de 1,2 mil reais.

“Vale lembrar que são 13 anos de cultivo, irrigação, fertilização, podas, cuidados, ou seja, oferecemos a oportunidade de abreviar o tempo para quem deseja colher frutas no quintal”, afirma Pedro.

Resultados e planos

Aline conta que a internet ajudou ainda mais a empresa a entrar em contato com as pessoas comuns. Na venda física, quem mais marca presença são os paisagistas e as lojas revendedoras. Já na internet, há mais presença de pessoas que amam jabuticabeiras sem fazer disso uma parte de sua profissão.

“Esse é um público que já se acostumou a encontrar tudo o que deseja na internet, mas se surpreende ao saber que pode escolher e receber em casa uma jabuticabeira produzindo também por esse meio”, explica a gerente comercial.

A estratégia online foi acertada: hoje, as transações digitais representam 80% do faturamento da Jabuticabeira.

Mesmo com os tempos de crise econômica, a Jabuticabeira pretende aumentar as vendas em relação do ano passado em 30%.

Para isso, aposta em parcerias com lojas selecionadas. Essas revendedoras comercializarão as árvores da Jabuticabeira de forma exclusiva – uma “espécie de mini franquia”, diz Aline. “Também abrimos um novo show room, em Itu [São Paulo], visando estar mais próximo daquele cliente que deseja escolher a sua árvore pessoalmente.”

Cortar custos onde possível e ser mais sustentável também está nos planos. “No começo do ano, concluímos a automação da nossa irrigação. Com esse trabalho, vamos economizar mais de 50% do recurso hídrico necessário para cultivar nossas plantas”, afirma Pedro.

Agora nas cidades, a agroecologia dos sem-terra

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A pergunta “O que você alimenta quando se alimenta?” já é clássica entre as pessoas que se preocupam com alimentação e meio ambiente. Alimentamos a cadeia do agronegócio, da monocultura, dos agrotóxicos? Grandes redes de supermercado? Ou a cadeita da agroecologia, comprando diretamente do produtor nas feiras orgânicas? Pois agora a população paulistana vai poder alimentar, além de produção agrícola e meio ambiente saudáveis, uma política social justa e progressista para o país. Uma política e uma estética.

O Armazém do Campo – Produtos da Terra, inaugurado neste sábado a partir das 10h na região central de São Paulo, é um entreposto de alimentos agroecológicos produzidos por assentados do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) e por agricultores familiares de todo o país. Com grande diversidade de produtos in natura e processados, vinhos e cachaças orgânicos e produtos culturais como livros e agendas, o espaço irá abranger todo o território nacional, centralizando a distribuição de produção agroecológica de todo país em São Paulo.

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Um projeto generoso e sofisticado, a começar pela decoração. A loja foi montada num galpão de pé direito alto, com banners de chita estampada bordados com palavras de ordem e fitas coloridas pendendo do teto e móveis rústicos de madeira – aquela beleza da cultura popular, feminina, que só a mais elaborada simplicidade permite. Dominando a cena, uma pintura em tecido da grande inspiradora da agroecologia, Ana Primavesi.

Resistência, transformação social, educação libertadora, reforma agrária são algumas das bandeiras do Armazém – fruto de um esforço coletivo do movimento dos sem terra e outros camponeses organizados em cooperativas e associações para levar alimento nutritivo à mesa dos trabalhadores paulistanos, com preço justo para o produtor e para o consumidor.

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“Vimos que para dar um passo adiante tínhamos de nos livrar do atravessador”, disse Delwek Matheus, assentado na região de Itapeva (SP) que integra a coordenação nacional do movimento. “O Armazém do Campo é resultado de um avanço do MST nacional em organização, beneficiamento dos produtos, seu registro nos termos da lei e logística para comercialização, cumprindo a função social da reforma agrária, que é levar comida saudável à mesa da população brasileira.”

A ideia de abrir a loja em São Paulo – a segunda no país, já que há 16 anos existe um entreposto no Mercado Municipal de Porto Alegre – surgiu depois da experiência super bem sucedida da 1aFeira Nacional da Reforma Agrária, realizada também em São Paulo, em outubro do ano passado. Durante quatro dias, cerca de 100 mil pessoas foram ao Parque da Água Branca para comprar, a preços populares, mais de 200 toneladas de alimentos, com cerca de 800 variedades de produtos das áreas de assentamentos da Reforma Agrária e a presença de 800 agricultores de 23 estados e Distrito Federal. Paralelamente, uma programação com shows, intervenções culturais, seminários e uma área de Culinária da Terra numa praça de alimentação com comidas típicas de cada região.

Alimento como política e cultura. “Na verdade temos demanda para abrir três armazéns, em São Paulo, Belo Horizonte e num município do Rio de Janeiro. Nossa intenção é ter um em cada estado brasileiro, com base no conceito de soberania alimentar, que busca respeitar os produtos e modos de produção regionais”, disse Débora Nunes, assentada em Alagoas que também integra a coordenação nacional do MST. “O armazém cumpre ainda o papel fundamental de abrir diálogo com a população urbana e partilhar com ela nossas dificuldades. Por exemplo, a burocracia existente para registrar os produtos. As exigências colocadas para grandes empresas – altamente subsidiadas pelo Estado, diga-se – são as mesmas impostas aos assentados, e isso não pode impedir o acesso da população aos alimentos. Lutar por outras políticas é tarefa não só dos camponeses, mas de toda a sociedade brasileira, daí a importância desse diálogo.”

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O armazém tem produtos da reforma agrária e de agricultores familiares de todos os cantos deste país – das cinco regiões, todos os estados, milhares de municípios. Rodrigo Teles, coordenador da loja – crescido em família assentada no Paraná – lembra que ela é fruto da organização para banir o atravessador, de modo que o agricultor seja bem remunerado e o consumidor não seja explorado.

“É um novo conceito de loja”, diz ele. “Abastecemos o Café Colombiano, que oferece uma ampla variedade de quitutes elaborados com nossos produtos para que o consumidor possa provar o sabor dos alimentos. Temos a venda direta ao consumidor, a venda por atacado com desconto para revendedores, a composição de cestas de alimentos para entrega em domicílio e ainda a doação para associações que trabalham com populações excluídas. Será um espaço de discussão política”, diz.

A logística para fazer chegar a São Paulo produção tão diversificada está sendo bancada pelo MST, mas deveria ser oferecida pelo Estado, dizem os coordenadores. “É um custo grande, que ainda não conseguimos calcular, até porque contamos com a ajuda de muitos produtores, mas que pode encarecer os produtos. Deveriam ser oferecidos num mercado público, cumprindo assim sua função social”, sustenta Delwek. A margem de lucro aplicada aos produtos é de 30 a 40%, dependendo dos impostos, que variam entre os estados.

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“A ideia é também desconstruir alguns mitos ligados à produção orgânica no país. O primeiro é que custa mais caro produzir agroecologicamente do que com agrotóxicos. Outro é que, por ser um produto de qualidade, é menos acessível. Há muita exploração em torno dos produtos orgânicos, já que grande parte da população está preocupada em consumir alimentos sem agrotóxicos”, diz Débora. Mesmo na crise, a venda de orgânicos continua crescendo cerca de 25 a 30% ao ano no país.

Vivemos um cenário de crise alimentar em que é cada vez maior a importância de organizar um modelo alternativo. Os alimentos estão cada vez mais caros nos supermercados, e apesar da produção atual de comida ser suficiente para alimentar toda a humanidade, uma em cada sete pessoas no mundo passa fome, conforme o Relatório anual da Agência da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Soma-se a isso o fato de o Brasil ser o maior consumidor de agrotóxicos do planeta, uma média de 5,2kg de veneno ingerido por habitante.

Hortas urbanas, muito mais que moda hipster

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A Habitat III, conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) dedicada às cidades, vai explorar as possibilidades da agricultura urbana como solução para garantir a segurança alimentar. Mas em Nova York teve um impacto muito maior. Nas cidades de todo o mundo são registrados níveis históricos de desigualdade. Mesmo em Nova York, coração do mundo rico, muitos setores não têm garantida sua segurança alimentar.

Na Habitat III, que acontecerá de 17 a 20 de outubro, em Quito, capital do Equador, será a primeira vez em 20 anos que a comunidade internacional se reunirá para analisar as consequências da urbanização e pensar em uma nova estratégia global, a Nova Agenda Urbana.

Em Nova York, o preço dos alimentos aumentou 59% desde 2000, ao contrário do salário médio dos trabalhadores adultos, que só aumentou 17%. Cerca de 42% das famílias não têm renda suficiente para cobrir suas necessidades de alimentação, moradia, vestimenta, transporte e saúde, mas superam a quantia necessária para poder receber assistência estatal.

Em 2015, foi criado o plano OneNYC, vinculado aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU, que pretende tirar cerca de 800 mil pessoas da pobreza em uma década. “O OneNYC tem grandes expectativas e se esforça muito para atender a igualdade no sistema de alimentação e na gestão de desperdícios, garantindo que cada vez mais cidadãos tenham acesso a alimentos saudáveis e bons”, explicou à IPS Michael Hurwitz, diretor do mercado verde GrowNYC e que trabalha no OneNYC.

Hurwitz acrescentou que,“em uma cidade como Nova York, a agricultura urbana pode ter vários papéis: além de alimentar sua população, educa, oferece espaços seguros e ajuda a compensar o orçamento destinado à alimentação”. A agricultura urbana desempenha um papel significativo na alimentação da população das cidades em todo o mundo.

De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 800 milhões de pessoas cultivam verduras e frutas ou criam animais nas cidades, produzindo o que, segundo o Instituto Worldwatch, representa a assombrosa proporção de 15% a 20% da produção mundial de alimentos. Isso ocorre em lugares do mundo onde a agricultura urbana ou periurbana representa de 50% a 70% do consumo de verduras da cidade.

Na África, estima-se que cerca de 40% das populações urbanas se dedicam à agricultura. Quem vive nas cidades há muito tempo, ou quem chegou há pouco, planta porque tem forme, sabe como cultivar, além de o valor da terra ser baixo e os fertilizantes baratos. Mas nos Estados Unidos, a agricultura urbana provavelmente tenha maior impacto sobre a segurança alimentar em lugares que, de certa forma, são mais parecidos com o Sul global, isto é, cidades onde a renda média é baixa e há uma grande necessidade de alimentos acessíveis.

Hurwitz observou o poder transformador da agricultura quando foi trabalhador social em Redhook, no Brooklyn, bairro onde a renda de 40% dos moradores era inferior a US$ 10 mil por ano. Nesse lugar, trabalhou em uma horta comunitária com adolescentes de 16 e 17 anos, em um programa vinculado ao sistema judicial. Os jovens levavam o que colhiam para suas casas ou vendiam em mercados, restaurantes locais e outros estabelecimentos.

“Nossos jovens se tornaram agentes de mudança em suas comunidades. Ninguém queria trabalhar com muitos dos adolescentes com os quais trabalhamos, mas, quando se converteram na principal fonte de alimentos saudáveis em seu bairro no mercado de produtos orgânicos, seus colegas, e os adultos, se deram conta de que, na realidade, estavam gerando uma mudança na comunidade”, acrescentou Hurwitz.

O sistema foi ampliado por meio da GrowNYC, uma organização não governamental que funciona no escritório do prefeito de Nova York, Bill de Blasio, e trabalha com seis mil jovens por ano e oferece material para que o pessoal docente trabalhe com eles na aula. Seu programa Grow to Learn (Cultivar para Aprender) está encarregado de todas a hortas escolares da cidade. Além disso, administra um projeto de mini empréstimos e oferece assistência técnica e capacitação para os professores sobre o cuidado com as hortas.

No Bronx Sul, o mais pobre dos 435 distritos congressuais dos Estados Unidos em 2010, vivem 52 mil nova-iorquinos com renda bem baixa, 42 mil dos quais abaixo da linha de pobreza, e é conhecido como “deserto alimentar”. Quando a GrowNYC foi a esse bairro pela primeira vez, um policial alertou seu pessoal: “Não queiram entrar, porque não é seguro”, recordou Hurwitz. “Mas em dois meses uma área difícil se converteu em uma esquina grandiosa, de maravilhosa atividade porque havia jovens vendendo alimentos aos seus vizinhos”.

Há anos o programa Learn it, Grow it, Eat it (Aprenda, Cultive, Coma), da GrowNYC, trabalha com escolas no Bronx Sul, ajudando a formar líderes ambientais, contou Hurwitz. A iniciativa cuida de um dos postos agrícolas de jovens da organização, capacitando-os em administração e agricultura para que possam gerenciar seus próprios postos de venda. “Vimos muitos começarem em nosso mercado e passarem a ser administradores do programa”, acrescentou.

Em Nova York não se trata só de produzir uma quantidade padronizada de alimentos para as comunidades necessitadas, mas de refletir a diversidade cultural. “Em nosso programa temos quem cultive produtos por cerca de US$ 240 mil por hectare em Staten Island”, a ilha diante de Manhattan, pontuou Huwirtz. Os mexicanos plantam cultivos tradicionais para alimentar sua comunidade. Se não fosse isso, não teriam acesso aos alimentos com os quais estão acostumados.

Surgiram os grandes operadores de estufas e estas ficaram em moda. Mas o cultivo de uma variedade limitada de verduras de grande qualidade não bastará para alimentar as populações urbanas. “Preferiria que se destinassem US$ 2 milhões para a preservação de plantações rurais a fim de alimentar as cidades”, opinou Hurwitz. “Dessa forma seria possível levar alimento às cidades, garantir que todos tivessem acesso a ele e assegurar que as propriedades continuem sendo viáveis”, acrescentou.

Os prognósticos indicam que a população das cidades duplicará nos próximos 30 anos, segundo o Atlas de Expansão Urbana. “A segurança alimentar relacionada com a urbanização é um dos grandes temas que atrairão a atenção dos participantes da Habitat III”, destacou Juan Close, diretor da ONU Habitat.

Governo expulsa da floresta comunidades que mais preservam a floresta

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Uma casa queimada, instrumentos de trabalho apreendidos, comércio e roça proibidos. Tratados como uma ameaça à preservação, os ribeirinhos do rio Iriri, no Pará, sofrem pressão para abandonar o “beiradão” – a beira do rio é mais do que o lugar onde vivem, mas o lugar onde se fazem vivos. Por ações como essas, o cientista social Mauricio Torres trata o ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade) por ICMBope, em referência ao Batalhão de Operações Policiais Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Nesta entrevista, ele revela as contradições na postura do Ministério do Meio Ambiente sobre as unidades de conservação: “São permissivos em relação à usina hidrelétrica de Belo Monte, mas quando veem um ribeirinho numa canoa, ‘deus do céu, tira esse monstro daqui que ele vai acabar com a Amazônia’”, ironiza.

Profundo conhecedor da região e de sua gente, Torres baseia suas críticas em um longo trabalho de pesquisa de campo realizada na Estação Ecológica Terra do Meio, publicada no livro digital Não existe essa lei no mundo, rapaz!. Nele, junto com Daniela Alarcon, traça um retrato da violência contra os beiradeiros do rio Iriri, caso exemplar do modo como comunidades são perseguidas, ameaçadas e expulsas de unidades de conservação pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) e mais recentemente pelo ICMBio.

A Estação Ecológica Terra do Meio faz parte do Mosaico de Unidades de Conservação de mesmo nome, entre os rios Xingu e Tapajós, no Pará. O mosaico foi criado após a morte da irmã Dorothy Stang para fazer frente à grilagem, à exploração comercial da madeira e à pecuária. Os estudos indicavam que a área deveria ser uma Reserva Extrativista, modalidade que prevê o uso da floresta pelas comunidades. Em vez disso, as famílias ficaram dentro de uma Estação Ecológica, modelo com restrições à presença humana.

Se os ribeirinhos do Iriri são considerados uma ameaça à preservação, não muito longe dali, no Rio Xingu, são um entrave à construção da usina hidrelétrica de Belo Monte, que vai alagar 510 quilômetros quadrados e pode gerar desmatamento de até cinco mil quilômetros quadrados, segundo estimativa do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).

Na última semana, o Ministério Público Federal do Pará divulgou relatório de inspeção que denuncia a remoção de famílias de seus territórios com indenizações irrisórias ou a áreas de reassentamentos consideradas inadequadas. “Está em curso um processo de expropriação dos meios de produção da vida dos grupos ribeirinhos impactados pela UHE Belo Monte”, afirma Thais Santi, procuradora da República em Altamira, na apresentação do relatório.

Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo, Torres vive em Santarém nos intervalos do trabalho de campo que realiza para diversas organizações, entre elas o Ministério Público Federal. Ele narra o impacto que a saída do beiradão tem sobre a vida dessas famílias, cuja identidade e existência estão apoiadas nos marcos do território.

Repórter Brasil – O Ibama e o ICMBio agiram de forma violenta contra os beiradeiros?

Mauricio Torres – Desde a criação da unidade de conservação, os beiradeiros estão imersos em um quadro de violência cotidiana e violação de direitos. O órgão ambiental responsável pela gestão – antes o Ibama e agora o ICMBio – por muito tempo fez pressão para que as famílias reduzissem sua produção e impediu a comercialização do excedente, reduzindo as condições de sobrevivência. Durante nossa pesquisa em campo, um bombeiro que acompanhou uma operação do Ibama na Estação Ecológica da Terra do Meio nos contou que o então chefe da unidade de conservação ordenou a expulsão de moradores e chegou a atear fogo na casa de uma família.

Além disso, direitos como educação, saúde e transporte são negligenciados. Assim, vem ocorrendo um processo de expulsão, causado tanto pelas pressões impostas pelo Estado ao modo de vida desse grupo, quanto por abandono e privação de direitos constitucionais.

Houve outros casos de violência e pressão explícitas?

Os moradores contam que uma gestora do Ibama recolheu todas as facas, enxadas e terçados – instrumentos de trabalho – das famílias ribeirinhas, considerando que eram “armas brancas”. Uma violência absurda. Foram apreendidas as baterias de energia usadas pelas famílias para fazerem as festas. Ou seja, são retiradas não só as condições que forneciam as possibilidades materiais, como as que permitiam um mínimo de sociabilidade. Quando essas famílias, num átimo de desespero, abandonavam tudo e se lançavam no mundo sem nada além do que elas pudessem carregar, o Ibama, e depois o ICMBio, diziam com orgulho que elas haviam deixado o local espontaneamente.

É importante registrar que a coisa muda bastante com a chegada da última gestora da unidade de conservação, Tathiana Chaves de Souza. Ela teve sensibilidade em relação a esses grupos, de modo que, depois da sua chegada, essas pressões se aliviaram muito. Em compensação, as limitações começaram a vir de Brasília.

O que os ruralistas fazem ao negar certas etnias como índios é muito parecido com o que o ICMBio faz ao negar a condição de comunidade tradicional

A legislação não protege as comunidades tradicionais desse tipo de ação?

A lei é bem clara: as comunidades tradicionais que vivem em unidades de conservação – mesmo naquelas de proteção integral – têm direito a permanecer nessas áreas. As condições dessa permanência devem constar em acordos firmados entre os ocupantes e o órgão ambiental. A Constituição Federal e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho garantem o direito à permanência dessas famílias. Mas chegavam os servidores do Ibama, muitos sem qualquer preparo sobre o conceito de comunidades tradicionais, para concluir que os grupos não eram comunidades tradicionais.

Esse questionamento é referendado pelos gabinetes do órgão em Brasília, o que não é despreparo. É um questionamento conveniente à entrega de territórios tradicionalmente ocupados para concessão florestal, para grandes projetos de infraestrutura logística. É uma violação do direito das comunidades tradicionais à autoidentificação. O que os ruralistas fazem ao negar certas etnias como índios é muito parecido com o que a direção do ICMBio faz ao negar a certos grupos a condição de comunidade tradicional.

O ICMBio não tem competência, no sentido de atribuição, para esse diálogo. É um órgão focado na questão ambiental. Eu dei aula em três cursos de formação de gestores ingressos no ICMBio. O tempo destinado à discussão acerca dos territórios tradicionalmente ocupados e de comunidades tradicionais era absurdamente pequeno, duas ou quatro horas. A duração das aulas de tiro era maior.

Por isso você fala em ICMBope?

Eu digo que às vezes o ICMBio parece ser o ICMBope, com ações policialescas e repressivas. Eu não estou condenando ações de repressão ao madeireiro. Eu estou falando de ações policialescas e repressivas contra o ribeirinho, como as famílias que vivem em diferentes unidades de conservação sofreram não sei quantas vezes. Quando analisamos a atuação do órgão ambiental em face dos povos e comunidade tradicionais, encontramos coisas aberrantes. E isso vem piorando.

O ICMBio parece ser o ICMBope, com ações policialescas e repressivas. Não estou condenando ações de repressão ao madeireiro. Eu estou falando de ações contra o ribeirinho

A criação do mosaico de Unidades de Conservação da Terra do Meio reduziu os conflitos e a grilagem?

No Pará, adotou-se uma política de combater grilagem com a decretação de unidades de conservação. E isso não é algo automático, pois as unidades de conservação não são instrumentos de regularização fundiária, mas de proteção ambiental. A decretação da unidade de conservação torna a área não “grilável”, não passível de ser apropriada privadamente. Mas são muito precários – se não inexistentes – os procedimentos para se retomar as terras em poder de grileiros. O fato é que a regularização fundiária virou um grande gargalo das unidades de conservação.

Os grileiros foram expulsos ou sofreram pressão como os beiradeiros?

O mosaico da Terra do Meio é o único caso que eu conheço em que quase todas as grilagens foram expulsas. Mas isso foi feito pelo MPF. Até hoje, o ICMBio não moveu uma ação de reintegração contra os grileiros que ocupavam ou os poucos que restam no mosaico. Por exemplo, em áreas que estavam fora da jurisdição do procurador da República Marco Antonio Delfino de Almeida, responsável pela ação, há grileiros instalados que nunca foram sequer incomodados. Se o órgão tem um bom tráfego na questão ambiental, é precário na questão fundiária. Faltam instrumentos legais para que o ICMBio tenha competência de arrecadar as terras que devem ser transferidas para o seu nome.

Famílias foram expulsas, em um primeiro momento por causa dos grileiros, e depois pela pressão do órgão gestor da Estação Ecológica. Como isso é vivido por elas?

Eu trabalhei com expropriados do Parque Nacional da Amazônia, no rio Tapajós, na década de 1970. A principal queixa era a educação dos filhos. A frase que muitas famílias repetiam era: “eles não nos obedecem mais”. Quando falo educação, estou indo muito além da escolarização. Sabemos, de Aristóteles a Foucault, que o mestre ensina porque é investido de uma autoridade conferida pelo saber. Esse saber é local.

Eu conheci verdadeiros sábios, com um conhecimento extremamente profundo sobre a floresta, sobre seus usos, seus perigos, seus remédios, suas possibilidades de fartura. Quando essa família sai, e vão trabalhar como guarda noturno ou como faxineira, são desprovidos desse saber. Eu conheci uma senhora que disse que o marido remava dois dias pra pescar no lugar onde eles viviam, que ele não sabia pescar em outro lugar, e a última frase dela foi: “ele não era mais”. Esse “não era” sem o complemento é extremamente eloquente. Ele não era mais. Ponto.

O impacto de expropriar essas famílias é irreparável. Como se indeniza o túmulo de um filho que ficou lá no beiradão?

A identidade de beiradeiro, como qualquer outra, é apoiada em uma memória do grupo, construída em cima daquelas histórias ancoradas naquelas pedras dos rios, naquelas seringueiras, naquelas castanheiras. Na hora em que você priva as pessoas de tudo isso, você priva o grupo da memória e abala suas identidades.

O impacto de expropriar essas famílias é irreparável. Como se indeniza o túmulo de um filho que ficou lá no beiradão, perto da antiga morada de uma família expulsa?

Existe uma orientação do Ministério do Meio Ambiente de que a presença dessas populações é incompatível com essas Unidades de Conservação?

Há, dentro do ICMBio, duas tendências: a preservacionista, que é avessa à ocupação humana em unidades de conservação, e a conservacionista, que entende que, se as áreas que hoje correspondem a unidades de conservação foram ocupadas por povos e comunidades tradicionais durante séculos e estão bem conservadas, é porque o uso que fazem dos recursos é, em si, um valor ambiental.

A corrente preservacionista que hoje domina o órgão em Brasília é classista: o problema é o pobre. Instalar um resort em um Parque Nacional para receber milionários é algo muito bem-vindo, mesmo que isso tenha impacto ambiental. Já a comunidade tradicional que fazia um uso absolutamente interessante e menos impactante que o hotel tem que ser expulsa. Os responsáveis pelo órgão são permissivos em relação à usina hidrelétrica de Belo Monte, mas quando veem um ribeirinho numa canoa, “deus do céu, tira esse monstro daqui, que ele vai acabar com a Amazônia”.

Como compara a situação dos beiradeiros da Terra do Meio com a dos ribeirinhos removidos por Belo Monte?

Ao passo que a descomunal degradação gerada por Belo Monte contou com benevolência dos órgãos de controle ambiental, a meia dúzia de famílias de extrativistas distribuídas ao longo em 300 quilômetros do rio Iriri é tida como intolerável, geradora de impactos inadmissíveis a uma unidade de conservação de mais de 3 milhões de hectares.

No caso de Belo Monte, a atual orientação da política ambiental mostra sua subserviência às políticas de “desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, a dramática situação dos ribeirinhos expropriados pela usina dá uma boa amostra do quadro ao qual resistem os beiradeiros do alto Iriri: desagregação do grupo comunitário, destruição do modo de vida, perda dos meios de subsistência. Mas o modo como as famílias da Estação Ecológica foram expulsas – e outras ainda correm risco de ser – é ainda mais cruel. Elas sequer “existem” como famílias removidas. Não houve um processo instaurado para retirá-las da terra, ao contrário: sequer se admitiu que isso estava sendo feito.

Há um senso comum de que a floresta conservada é incompatível com a presença humana?

O primeiro senso comum é de que a Amazônia não é ocupada. Podemos compreender quando esse discurso é empregado pelo citadino do centro-sul, mas não quando lastreia a ação de burocratas que trabalham com isso. A arqueologia mostra que muito do que se imaginava ser floresta virgem são ambientes socialmente construídos. Arqueólogos mostram que a Amazônia já chegou a ser muito mais habitada do que hoje. Eu diria até que o que existe de mais efetivo para deter o desmatamento são justamente esses povos da floresta. E Chico Mendes, no Acre, já mostrava isso há 30 anos. O que está detendo o desmatamento são os territórios étnicos: as terras indígenas, os territórios quilombolas ou as unidades de conservação ocupadas por comunidades tradicionais.

Mas tem uma coisa que me incomoda: o discurso de que “eles detêm o madeireiro porque amam a floresta”, como se fossem essencialmente bons e puros. A relação com a floresta está mais regida pelo campo político do que pelo moral. Eles terem a floresta saudável e íntegra do lado de casa é uma necessidade para a sobrevivência. Quando eles detinham o desmatamento, o avanço do pasto do grileiro, eles estavam lutando pela própria sobrevivência.

Ter floresta saudável e íntegra do lado de casa é uma necessidade para a sobrevivência

Como essas comunidades mantêm a floresta com o uso da própria floresta?

Uma das coisas mais certas na Amazônia, depois do grileiro, é a umidade. É muito difícil fazer estocagem. Essas comunidades, herdeiras de conhecimentos indígenas, detêm uma tecnologia capaz de reconhecer na floresta uma quantidade imensa de potencialidades para garantir a manutenção de uma despensa viva e, portanto, sadia. Até nos roçados a gente encontra um sistema que imita a dinâmica da própria floresta.

As comunidades ribeirinhas têm verdadeiros bancos de germoplasmas. Lá no rio Iriri, é possível perceber uma variedade enorme de cultivares de mandioca, pouquíssimas catalogadas pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Na lógica da agricultura capitalista, o razoável seria: planta-se a mais produtiva, a melhor. Mas a prioridade dos beiradeiros é a necessidade da família. Então, tem uma variedade de mandioca que é para mulher grávida, uma para quem está convalescendo, outra para o idoso, outra que é muito precoce e já pode virar farinha depois de seis meses, outra que suporta e consegue ficar enterrada por até três anos e mantém essa função de estocagem viva. O grupo garante, assim, sua segurança alimentar.

Uma vez eu estava andando com um engenheiro florestal. Ele olhou para uma árvore e comentou: “com isso vocês fazem cabo de machado, não é?”. O beiradeiro disse: “não, com isso a gente faz cabo de enxada, porque isso é leve. Cabo de machado, a gente faz com tal madeira. Mas cabo de foice, a gente faz com aquela outra, e cabo de vassoura…”. Ele enumerou uma série de cabos de ferramentas, sem repetir a madeira, a espécie. Essa tecnologia de saber a propriedade de cada madeira responde por sustentabilidade. Mostra que ele vai explorar com baixa pressão uma quantidade muito grande de espécies e não vai sobrecarregar um único recurso. Não esgotar o recurso é um componente fundamental de um modo de vida construído ao longo de gerações.

Saber a propriedade de cada madeira responde por sustentabilidade. Mostra que ele  não vai sobrecarregar um único recurso

Qual a situação hoje das famílias?

Para amenizar situações de conflito – no caso de sobreposições territoriais – eram elaborados termos de ajustamento de conduta ou termos de compromisso, em que se firmava um acordo entre as duas partes, o grupo ocupante e o órgão ambiental. O termo de compromisso foi elaborado, consensuado com as famílias beiradeiras que vivem no interior da unidade de conservação, a gestora do ICMBio deu todo o encaminhamento devido e ele parou em Brasília. Assim, sem qualquer justificativa, o processo foi paralisado e as famílias continuam no limbo. Os processos de elaboração e assinatura de acordos dessa natureza foram estancados em Brasília. Isso saiu de pauta.

 

O que pode gerar esse vácuo provocado pelo Estado ao não garantir o direito dessas famílias, e entrar como o braço repressor?

Há frentes de grilagem e madeireiros que estão chegando lá, vindas da BR-163 (Cuiabá-Santarém) no sentido oeste-leste. E eles sabem muito bem como trabalhar com a cooptação ocupando o vácuo do Estado. Estamos falando dos beiradeiros do rio Iriri, tratados no livro, mas existem também os do rio Curuá, um afluente do rio Iriri, que passaram pelo mesmo processo: conforme os estudos, deveriam ser beneficiados por uma reserva extrativista e não foram, foi criado um outro tipo de unidade de conservação lá, uma floresta estadual, que é um tipo focado no fornecimento de madeira.

O caso do rio Iriri não é isolado…

Exatamente. Grileiros e madeireiros já estão equipados para o que a gente vai chamar, entre muitas aspas, de assistência social: garantem transporte, socorro num caso de doença, possibilitam que uma criança vá estudar na cidade mais próxima etc. Na ausência do Estado como garantidor de direitos, eles entram na área com o seguinte discurso: “estamos indo para ajudar os ribeirinhos abandonados”. A gente sabe muito bem o preço que isso vai ter. A entrada de um ente privado em um vácuo deixado pelo Estado, levando a essas pessoas aquilo que é seu direito, é o caminho pelo qual se formaram máfias no planeta inteiro. A postura do Estado hoje é pavimentar o caminho desses grileiros.

Há quem defenda que as unidades de conservação devem ser Florestas Nacionais em que determinada área é concedida aos madeireiros e, a partir desse ponto, devem ser de proteção integral, onde não pode ter gente. Mas e as comunidades tradicionais? Elas já estão lá.